quarta-feira, 26 de junho de 2013


Correio Braziliense

CÉSIO 137

Remédios em falta

Exatos 20 anos depois do maior acidente com material radioativo em área urbana do mundo, centenas de vítimas sofrem sem medicamentos para tratamento das seqüelas

Guilherme Goulart

Goiânia (GO) – As pessoas que tiveram contato com a radiação do césio 137 conquistaram o direito de receber gratuitamente do estado remédios indicados para as doenças provocadas pela contaminação. Os males são os mais diversos. Aqueles que sobreviveram carregam a sensação de envelhecimento precoce. A maioria tem entre 40 e 50 anos. Eram jovens em setembro de 1987, quando Goiânia sofreu o maior acidente nuclear do mundo em área urbana. Hoje sofrem de hipertensão, osteoporose, reumatismo, impotência, problemas cardíacos. Alguns desenvolveram tumores.

Ao longo do último ano, porém, o desconforto e a agonia das vítimas pioraram. Desde abril do ano passado, a Secretaria de Saúde de Goiás enfrenta dificuldades no fornecimento das medicações. A distribuição de remédios se tornou inconstante e imprevisível. Hoje, quando a tragédia completa exatos 20 anos, caixas vazias dos mais diversos medicamentos se acumulam nas casas dos atingidos pelo desastre. Muitos recorrem a empréstimos para garantir a qualidade de vida. Acabam endividados — mesmo comprando apenas o básico. Outros deixam de tomá-los por não terem condições sequer de se sustentar.

O presidente da Associação de Vítimas do Césio 137, Odesson Alves Ferreira, reclama do descaso. Lamenta a irregularidade e o sofrimento dos envolvidos. “O pior é que são medicações essenciais para uma vida no mínimo tolerável. A maioria das vítimas não tem condições de comprá-las e acaba numa situação ainda mais terrível”, denuncia. Odesson é irmão de Devair Alves Ferreira, dono de ferro-velho e comprador da cápsula do césio 137. Perdeu parte dos dedos das mãos após uma visita ao terreno onde o irmão morava. Também depende de medicamentos.

Dores e marcas
A família de Luiza Odet Mota dos Santos, 48 anos, e de Kardec Sebastião dos Santos, 51, é uma das que têm de pagar para ter os remédios necessários à sobrevivência. Na época do vazamento do material radioativo, o casal morava num dos maiores focos de contaminação de Goiânia. Viviam exatamente atrás do ferro-velho de Ivo Ferreira, na Rua 6, no Setor Norte Ferroviário. Ivo é pai de Leide das Neves, 6 anos, a menina que morreu depois de ingerir o pó branco e radioativo e virou símbolo da tragédia goiana. Odet, como prefere ser chamada, é tia de Leide e irmã da mãe dela, Lourdes das Neves Ferreira.

A dona-de-casa precisa de reposição hormonal e cálcio. “Não tem um dia em que não sinto dores fortes nas juntas. Parece que tudo vem antes do tempo”, reclama. Odet pouco muda a expressão do rosto. É difícil dar uma risada e relaxar. Afinal, sem saúde fica difícil levantar da cama todos os dias. O césio também lhe arrebentou a pele. Há marcas visíveis da radiação em várias partes do corpo. “Na noite da contaminação, o Ivo chegou com aquele pó brilhante. Disse: ‘É hoje que a Odet vai ficar bonita’. E passou aquilo no meu pescoço e no ombro. Até hoje tenho marcas de três dedos dele no meu braço.”

O marido dela também revela sinais da destruição no braço e na barriga. Além da deformação, o césio provocou a diminuição da quantidade de plaquetas no sangue dele. A falta destes fragmentos de célula o expõe ao risco de morte, pois são elas as responsáveis pela interrupção de hemorragias. Kardec economiza nas palavras, quase não fala. Tenta manter o bom humor e ser gentil, mas sofre pelos cinco filhos e quatro netos. Todos têm problemas de formação. Os netos mais novos, um de 1 ano e outro de 3 meses, nasceram com refluxo. Vomitam com freqüência. E dependem de medicamentos.

A família Santos faz parte do grupo 1 (alto índice de radiação) entre os contaminados, segundo a denominação dada pelos técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Para elas e para a segunda e a terceira gerações de descendentes estão previstas pensões vitalícias de até R$ 800, mais assistência médica integral, que inclui os remédios. Passados 20 anos, os governos federal e estadual pagam R$ 1,1 mil ao casal. Mas o goiano cobra R$ 75,35 pelo plano de saúde, não garante exames e mal distribui os remédios.

Dívida 
A dona-de-casa Dalva Felizário de Jesus, 62 anos, teve de recorrer a um empréstimo no banco para garantir os medicamentos da família. A exemplo de Odet, morava num dos focos de contaminação do césio em 1987. Ela é ex-mulher de Ernesto Fabiano, irmão de Édson, o responsável por apresentar o pó branco aos parentes. Eles viviam na Rua 17A, no Setor Aeroporto, bem perto do ferro-velho de Devair. É o local onde a cápsula com o produto radioativo acabou desmontada e detonou o acidente nuclear.

O ex-marido de Dalva, fascinado com o brilho azul do material, queria fazer uma jóia para a mulher. Ela não gostou da idéia e jogou o fragmento no vaso sanitário — o césio não atingiu o lençol freático, mas todo o terreno recebeu uma camada espessa de concreto. Duas décadas depois, a dona-de-casa sofre de problemas de pressão e gastrite. Tem dificuldades de tocar a vida sem os comprimidos receitados para aliviar os sintomas das doenças dela, dos dois filhos e dos quatro netos.

O mesmo drama vivem os 186 trabalhadores do quase extinto Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa). São motoristas, mecânicos, pedreiros, marceneiros, faxineiros e engenheiros que trabalharam diretamente no serviço de descontaminação. Entre eles, o mecânico Teodoro Juvenal Bispo Neto, 57 anos, e a mulher, Valdeni, 55. Ele tem dores nos ossos e na cabeça. Também perdeu vários dentes. Ela sente cansaço excessivo. O casal recebe R$ 614 por mês. Mas precisa de R$ 800 só para medicações.

Quase dois anos de crise
A Superintendência Leide das Neves (Suleide) é responsável pela distribuição dos medicamentos comprados pelo governo de Goiás para vítimas do césio 137. Até o início do ano passado, a entidade, criada pelo estado em 1998 e vinculada à Secretaria Estadual de Saúde, cumpriu com regularidade a função de repassar os remédios aos atingidos. Mas dificuldades burocráticas para licitações, demora no pagamento dos produtos e encomendas consideradas de pequena quantidade pela indústria farmacêutica local contribuíram para o caos no fornecimento.

O superintendente da Suleide, o médico José Ferreira Silva, admite o problema. E acrescenta que também depende da disponibilidade da Relação Estadual de Medicamentos Essenciais (Resme) de 2006 — o documento contém a previsão de remédios nos próximos quatro anos — para garantir a distribuição sem falhas. “O principal fator é que algumas distribuidoras deixaram de fazer negócio com a Secretaria de Saúde, mas tudo estará resolvido em breve”, afirma Ferreira, único dos 13 profissionais de saúde da Suleide que estudou física nuclear.

O fornecimento das medicações começou a ser normalizado na primeira semana de setembro, quando o governo goiano firmou convênio com uma rede de farmácias. “Só conseguimos isso porque alguns distribuidores se sensibilizaram com a dificuldade”, revela o superintendente. A Suleide também tentará outras alternativas para evitar que se repitam problemas no fornecimento. Entre elas, a instalação de uma farmácia na sede da Suleide e o fechamento de uma parceria com a farmácia popular do Ministério da Saúde.

Ao todo, 156 vítimas do césio 137 têm direito à assistência do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado e a receber medicações da Suleide — na época da criação da entidade eram 102. Não existem medicamentos específicos para a radiação. Apenas para as conseqüências dela. A maioria das pessoas que tiveram contato direto com o pó radioativo também precisa de remédios para doenças psicossomáticas. São distúrbios como úlcera, alergias e hipertensão.

Militares
O benefício também é procurado por entidades como a Associação dos Militares Vítimas do Césio 137. São 500 associados, entre policiais militares e bombeiros que, em 1987, trabalharam no isolamento e segurança dos locais contaminados e no transporte de rejeitos. A associação luta até hoje na Justiça pelo reconhecimento dos militares como vítimas do material radioativo.

O secretário da entidade, sargento Santos Francisco de Almeida, 45 anos, denuncia que o governo estadual reconhece a exposição dos servidores, mas paralisa as ações na Justiça. Santos é um dos atingidos pela radiação. Sofre de pressão alta, diabetes, depressão, insônia e incontinência urinária. “Trabalhei com os rejeitos e nos centros de triagem do Estádio Olímpico de Goiânia. Acabamos expostos à contaminação e nem mesmo usávamos roupas especiais como os técnicos da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear)”, reclama.

O sargento continua na ativa. Mas nem todos continuaram a carreira. O tenente Edvaldo Martins Gomes, 42, foi declarado incapacitado para a função depois de fazer o mesmo serviço. A radiação o devastou. Desenvolveu tumor maligno no tórax, problemas respiratórios e nas amígdalas. Passou por seis cirurgias. “Os rejeitos ficavam a céu aberto e nós passávamos o dia todo nos locais. Perdi meu corpo e meus sonhos. Me formei em direito, queria ser coronel e sou primeiro tenente”, lamenta. Ironia ou coincidência, Gomes vive numa casa da PM na Rua 57. É o local onde a tragédia começou. 

FONTE:" Marinha do Brasil - Sinopse de Notícias Diárias da Mídia - Centro de Comunicação Social da Marinha". Site: "http://www.mar.mil.br/menu_v/sinopse/2007/13-09-2007.htm

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