domingo, 28 de julho de 2013

A HISTÓRIA DO SOLDADO VITIMA DO CÉSIO 137 LUTA PELO RECONHECIMENTO

Montanha de lixo radioativo: rejeitos do acidente em Goiânia/GO (1987)
Brigitte Luiza Guminiak
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Juliano Schiavo
A história do soldado que luta pelo
reconhecimento como vítima do
césio-137
Campo estelar no chão
terrestre
Acordou e encheu os pulmões de ar. Nascia um novo
dia e com ele uma história. O jovem, com seus 25
anos, mal sabia o que era o elemento césio-137 e
nem imaginava os problemas que lhe causariam no futuro.
Vestia uniforme azul-petróleo, que lhe recobria todo o corpo.
As calças, azuis também, eram abraçadas por um cinto
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Sociedade do Lixo
preto, que traçava uma linha divisória entre o tronco e as
pernas. Os coturnos negros e luzidios, como duas grandes
bocas abertas e sedentas de fome, abocanhavam os pés. Era
a antropofagia em pessoa: a autoridade engolia o civil.
O próprio nome já se mascarava com um ar de autoridade:
de Santos Francisco de Almeida, só o Santos sobrevivia.
Com uma agulha hipodérmica invisível, lhe era injetada a
função: soldado da Polícia Militar, acrescido daquele termo
dos iniciantes: recém-formado.
Vai, Santos! Vai! Chegou a hora de arcar com a Pátria, a
Pátria amada! Está na hora de servi-la. E ele, como um bom
soldado – o soldado que serve e morre por ti, Pátria amada
– rumou ao seu desígnio. Seis horas da matina, o quartel já
o esperava. O dia ia ser duro.
Era setembro! Mais precisamente 1987, que deveria ser
conhecido como o ano das estrelas. Isso mesmo: foi a primeira
vez que uma Supernova (nome dado aos corpos celestes
surgidos após as explosões de estrelas) era estudada
com aparelhagem moderna. Com o nome de Shelton Sn
1987A, essa Supernova foi a virgem que ajudou os astrônomos
de todo mundo a fortalecer ou eliminar as teorias que
estudam a expansão do universo.
Mas era no Brasil que a primeira pessoa segurava uma
outra estrela diminuta. Uma estrela azul e mortal. Pobre
Leide das Neves Ferreira, menina sorridente, que, por desconhecer
o perigo, tocou a estrelinha.
— Titia vem cá ver a pedra alumiante que o papai trouxe.
Com suas pequeninas mãos, Leide agarrou a tia Luísa
Odete Mota dos Santos. Como toda criança que descobre
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Campo estelar no chão terrestre
algo novo, tão surpreendente, foi serelepeando até o quarto.
Apagou a luz e, no chão, o céu se abria como num tapete
persa das mil e uma noites. As estrelinhas jogavam sobre
os olhares ávidos de Leide, de seis anos de idade, sua luz
azul-mortal. Quem poderia imaginar que podia existir uma
coisa daquela?
Ninguém imaginava. Nem mesmo Roberto dos Santos e
seu amigo Wagner Mota, sucateiros, podiam imaginar isso.
Naquela tarde de domingo, 13 de setembro de 1987, o sol
era o mesmo. A vida continuava a mesma. O calor, daquela
tarde, também. Tudo parecia ser a mesma coisa em Goiânia,
exceto o dinheiro que viria com a venda de chumbo proveniente
de um aparelho de teleterapia encontrado entre
as avenidas Tocantins e Paranaíba, no centro de Goiânia,
capital de Goiás. Lá funcionara, até 1985, uma clínica de radioterapia
que agora estava abandonada. Mas nenhum dos
dois sucateiros sabia do perigo.
Com a força que brotava de seus músculos, os dois ergueram
uma das partes do aparelho. O carrinho de mão,
com sua rodinha que girava sua volta de 360 graus e sustentava
uma peça com mais de cem quilos, foi cambaleante
pelas ruas, até repousar na moradia de Roberto. Número 68
da Rua 57, no Setor Central.
No quintal da singela casa, as marretas entraram em
ação. Tof, tof, tof. Talvez barulhos agudos, abafados, não
há como saber. Eram apenas barulhos de ferramentas, que
iam liberando, pedaço a pedaço, a Caixa de Pandora. Com a
força dos dois sucateiros, as partes se partiam. Partia também
a janela de irídio, que protegia a cápsula mortal, onde
repousavam 19 gramas de césio-137 – algo tão pequeno,
que cabia na palma da mão.
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Sociedade do Lixo
Era como se uma borboleta, tão bem protegida por seu
casulo, tivesse sido libertada ao mundo. E, com a liberdade,
suas asas azuis-mortais debatiam-se silenciosamente,
como se participassem de uma dança que, mais tarde, traria
tristeza, medo e morte. No mesmo dia, os sucateiros Roberto
e Wagner já sentiram os sinais de corpos debilitados:
náuseas, tonturas e vômitos.
A contaminação expandiu-se, carregada nos corpos,
vestes e calçados daqueles que tiveram contato com suas
partículas. Até aquelas pessoas que foram irradiadas pelos
raios alfa e beta do material radiativo tornaram-se expoentes
da contaminação.
Tudo ocorreu silenciosamente e numa rapidez tão grande
multiplicou-se, quando, retirado do quintal da casa de
Roberto, no dia 18 de setembro, o material foi transferido
para o ferro-velho I, na Rua 26-A, Setor Aeroporto. Esse ferro-
velho pertencia a Devair Alves Ferreira.
Wagner acompanhou a transação comercial. “Deu 128
quilos, mas ele [Devair] só pagou 120. Aí pegamos os 1.800
cruzados [equivalente a cerca de 70 reais], chegamos lá fora
e repartimos o dinheiro. Eu fui pra minha casa e Roberto
foi pra dele”.
No ferro-velho I, o material foi aberto por dois funcionários
e deixado de lado. Seu brilho encantador e mortal só
se revelaria à noite, quando o proprietário do local, Devair,
ao perceber algo diferente, tomou a si a peça que emanava
um brilho. Atraído, como que por magnetismo, o homem
pensou estar diante de um material sobrenatural e o levou
para sua residência. Hospedava, assim, o inimigo dentro de
casa.
Nos três dias seguintes à descoberta, maravilhado com
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Campo estelar no chão terrestre
seu “brinquedo” de luz brilhante, o dono do ferro-velho, com
o auxílio de uma chave de fenda, socializou o pó oriundo da
cápsula com amigos, vizinhos e parentes. Muitos passavam
o pó no rosto, comemorando, fazendo festa. O brilho azul
era uma sereia, cujo canto traduzido visualmente encantava
a todos. Devair e sua mulher, Maria Gabriela Ferreira,
ignoravam até então o fato de apresentarem cefaléias e vômitos,
sintomas iniciais da contaminação.
Foi dessa maneira que o pozinho chegou às mãos de Ivo
Alves Ferreira, irmão de Devair. De suas mãos, a pequena
parcela de pó repousou no bolso de sua calça e, assim, foi
levada para casa.
— É hoje que a Odete vai ficar bonita – disse Ivo, brincando
com o material e o passando no pescoço e ombro de
Luísa Odete, sua cunhada. Estava feliz, não sabia o perigo
que carregava consigo.
Na casa de Ivo, o material foi posto na mesa. Estava preparada
a ceia mortal: Leide, a filha, brincou com poeira do
césio-137, e depois comeu um ovo com as mãos sujas, engolindo
fragmentos radioativos. Era o pai entregando um
pedaço do céu reluzente, um mimo para alegrar a família.
Era Leide, toda feliz, carregando sua tia ao quarto e mostrando
seu novo brinquedo, seu tapete de estrelinhas. O
césio-137, naquele momento, mimetizava a morte em sua
forma azulada. Com seu esplendor, espalhava seu mal por
meio de sorrisos, brincadeira, festividades: sua beleza era
encantadora demais para parecer mortífera.
Enquanto isso, o material radioativo fazia sua peregrinação.
No dia 25, Devair vendeu o chumbo retirado da fonte
radioativa para Joaquim, também dono de um ferro-velho,
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Sociedade do Lixo
na rua P 19, lote 4. Sem que o marido soubesse, Maria Gabriela,
já desconfiada, colocou em meio aos pedaços do
chumbo a cápsula que guardava o pó. As suspeitas dela aumentaram
à medida que mais pessoas ficavam doentes.
Todas as vítimas que tiveram contato com o material
passaram mal. Náuseas, tonturas, vômitos e diarréias tornaram-
se algo comum na localidade. Afinal, de onde vinham
aquelas sensações de mal-estar? As drogarias eram procuradas
como auxílio. Outros procuraram postos de saúde e,
assim, foram encaminhados para hospitais. Mas mesmo
nos hospitais, nada podia ser feito. Os profissionais de saúde,
observando os sintomas, pensaram tratar-se de algum
tipo de doença contagiosa, medicando os doentes em conformidade
com os sintomas descritos. Marília Gabriela cismou
que esses problemas que afetavam as pessoas tinham
relação com aquele troço que brilhava no escuro.
— É esse trem que está fazendo mal pra nós.
No dia 28 ela foi até o ferro-velho e pegou uma amostra
do material. Junto com um empregado de seu marido, partiu
para a Vigilância Sanitária. No percurso, feito por meio
de ônibus, os passageiros foram contaminados. Ao chegar
ao local, a mulher colocou o saco com o material em cima
da mesa e disse a um funcionário:
— É isso que tá matando as pessoas.
O funcionário, que era veterinário, levou o conteúdo
para o pátio. Enquanto isso, médicos do Hospital de Doenças
Tropicais - onde muitos doentes estavam internados
- começaram a suspeitar que as lesões poderiam ter sido
originadas por contaminação radioativa.
O físico Walther Mendes, alertado, foi investigar o caso.
Munido com um monitor usado em medições geológicas
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Campo estelar no chão terrestre
de resposta rápida a estímulos, se dirigiu ao prédio da Vigilância.
No caminho, ao ligar seu aparelho, viu que em segundos
era acusado um elevado grau de contaminação radioativa.
Achou tudo aquilo muito estranho e providenciou
outro medidor, pensando que o primeiro aparelho estivesse
estragado. Dito e feito. Ele se certificou do fato.
Chegando à Vigilância, conseguiu impedir que bombeiros,
chamados pelo veterinário, jogassem o material no rio
Meia Ponte, ou seja, evitou que a cidade toda fosse contaminada.
Disse que era preciso conhecer o problema primeiro,
antes de tomar qualquer iniciativa. Salvou a cidade de algo
pior. Imediatamente, a Secretaria de Saúde do Estado foi
avisada e, no dia 29 de setembro (16 dias após o equipamento/
material radioativo ter sido encontrado na clínica de
radioterapia abandonada), a Comissão Nacional de Energia
Nuclear (CNEM) entrava em cena. A Rua 57 foi interditada.
Começaram as movimentações para isolar a área e separar
as pessoas contaminadas.
No quartel, com seu uniforme azul-petróleo, seu revólver
calibre 38 e cassetete de madeira, Santos entrou em ação.
Respondendo chamadas às sete e meia da manhã, o pelotão
do qual fazia parte foi escalado, junto com grande parte do
efetivo de Goiânia, para isolar as localidades acidentadas
por um “acidente de gás”.
Até então, tudo passava despercebido para o grande
público. Até mesmo a imprensa, sempre tão atenta, cobria,
naqueles dias, o primeiro Grande Prêmio Brasil de Motovelocidade
500 cilindradas, em Goiânia - GO, uma prova
válida para o campeonato mundial. Cerca de trinta mil
pessoas se aglomeravam no evento. O ronco dos motores
VRUMMMMMMM, VRUMMMMMMM demonstrava que
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Sociedade do Lixo
as motos rasgavam o asfalto e o grito da platéia EHHHHHHHHHHHHH
se mesclava com toda aquela velocidade.
O australiano Wayne Michael Gardner, de 28 anos, seguia
tranqüilo, tranqüilo no retão, mas o ar, quente e seco, fez
com que um rodamoinho incrível levantasse muitas folhas
de jornal. Remoinho de informação? Sem problemas! O incidente
foi contornado e Wayne Michael Gardner manteve
a liderança. Naquele ano o jovem já havia subido dez
vezes ao pódio, vencido seis grandes prêmios e pontuado
em todas as etapas. Ele liderava e ia faturar o título. Foi o
mais regular de todo o campeonato. Ele merecia!!! E lá ia
Gardner com seu uniforme azul e branco, cruzando a linha
de chegada, com sua moto número dois, que estava em
primeiro: melhor volta da prova: um minuto, 28 segundos
e 79 centésimos. Velocidade média de 155,49 quilômetros
por hora! Wayner Gardner conquistava sua 7ª vitória. Atrás
dele, Eddie Lawson e, logo em seguida, Randy Mamola.
Tudo era festa!
Do lado de fora do evento, os acontecimentos seguiam
seu percurso. O césio-137, com seu brilho encantador, ia fazendo
cada vez mais vítimas. O soldado Santos partia para
o ofício. Era soldado e oferecia a vida pela Pátria, que tantas
vezes abandona essas vidas. Normal? Não deveria ser...
O soldado, devidamente fardado, chegou com seu pelotão.
Outras equipes escaladas anteriormente já haviam
socorrido, de certa forma, os civis. Santos deparou-se com
pessoas desesperadas no Centro de Triagem do Estádio
Olímpico de Goiânia, local que abrigava provisoriamente
as vítimas do acidente com o césio-137 e onde era feito o
monitoramento do grau de radiação pela Comissão Nacional
de Energia Nuclear (CNEN).
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Campo estelar no chão terrestre
Lá havia astronautas, com macacões impermeáveis,
luvas, botas descartáveis, máscaras com filtros. Tinham
detectores de radioatividade, equipamentos de proteção
individual (EPI), máquinas e equipamentos necessários à
missão! Tudo isso para, o que se dizia, um acidente de gás.
Por que os militares e servidores públicos, que ajudavam a
isolar as localidades contaminadas e evitar o trânsito a pé
e motorizado das pessoas desavisadas, não podiam ter essa
roupa especial? O soldado se questionou. Porém, questionar
de nada adiantava àquela altura. Ele percebeu que corria
perigo, mas como estava no mesmo barco que seus amigos
de profissão, e com o dever solene de ter jurado defender a
Pátria, a sociedade – mesmo com o risco da própria vida –
pôs-se a cumprir o dever com cabeça erguida.
Antes de se deparar com “astronautas”, ou melhor, muito
antes disso, Santos tinha prestado cinco anos, sete meses
e sete dias de serviços ao (extinto) 42º Batalhão de Infantaria
Motorizada. Submeteu-se a uma bateria de exames
de saúde para ingressar nas fileiras do Exército Brasileiro.
Detalhe: foi julgado “apto”, sem problemas de saúde. Seu
desempenho físico era tamanho que, na época, participou
de marchas de dois até 42 quilômetros. Na semana da infantaria,
percorreu 14 quilômetros na Corrida do Infante.
Bota fôlego nisso! Licenciou-se do Exército em 10 de setembro
de 1986 e, no dia 1 de dezembro do mesmo ano,
ingressou na Polícia Militar de Goiás, após aprovação no
concurso e exame de saúde. Matriculou-se na 13ª turma do
curso de formação de soldados, no Quartel do Regimento
de Polícia Montada (RPMON). Aguardava sua movimentação
e era empregado no serviço administrativo na (extinta)
seção de ensino do quartel da Polícia Montada. Em 1987,
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Sociedade do Lixo
teve contatos imediatos de primeiro grau com os astronautas
terrestres. Goiânia parecia tornar-se um campo estelar.
Antes eram as estrelinhas azuis, agora eram os astronautas.
O que mais faltava???
No estádio olímpico, óbvio!, a competição parecia ser
mais a de quem estava menos contaminado, pois esses eram
logo liberados. Em três meses de trabalho da CNEN, de 30
de setembro a 21 de dezembro, foram monitoradas 112.800
pessoas, das quais 249 apresentaram significativa contaminação
interna e/ou externa; 120 delas contaminadas apenas
em roupas e calçados. Essas pessoas, após passarem
por um processo de descontaminação, foram liberadas. As
outras 129 passaram a receber acompanhamento médico
regular. Destas, 79 contaminadas externamente receberam
tratamento ambulatorial. Das outras 50 radioacidentadas e
com contaminação interna, 30 foram assistidas em albergues,
em semi-isolamento, e 20 foram encaminhados ao
Hospital Geral de Goiânia.
Desse grupo de 20 pessoas, 14 estavam em estado de
contaminação interna grave e foram transferidas para o
Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro.
A rotina de descontaminação era dura, sofrida, dolorosa.
Os contaminados passavam por inúmeros banhos com
água, sabão e vinagre para eliminar resíduos presentes na
pele. As áreas mais afetadas recebiam uma pasta com dióxido
de titânio e, depois, mais e mais banhos com sabão,
permanganato de potássio ou hipocloreto de sódio a 0,5%.
Tudo para eliminar o pó-azul-encantador-e-infelizmentemortal.
Para a recuperação das radiolesões, eram utilizadas so37
Campo estelar no chão terrestre
luções analgésicas e antissépticas. Houve casos em que o
bisturi teve que entrar em ação e extirpar cirurgicamente
tecidos necrosados. Os tratamentos seguiam. Para retirar
o césio-137 do corpo, os contaminados abriam a boca e engoliam
doses de três a dez gramas de ferrocianeto férrico,
mais conhecido como “Azul da Prússia” – ou seja, a mesma
cor azul que matava, agora salvava vidas. Naquela ocasião
o hospital também se transformava numa academia de ginástica,
mas numa academia onde não se buscava a estética:
o objetivo era fazer com que as vítimas transpirassem à
força, para eliminar os resíduos radioativos pelo suor. Ao
invés de complementos vitamínicos, entravam em cena os
diuréticos, também com a mesma função de eliminar os resíduos
mortais. Quem diria que um pozinho que cabia na
palma da mão poderia causar tanta dor e sofrimento?
Porém, os tratamentos médicos foram em vão. No dia 23
de outubro falecia a primeira vítima do acidente: Maria Gabriela,
esposa do dono do ferro-velho. Após algumas horas
foi a vez de Leide. Os corpos, colocados dentro de caixões
de chumbo, chegaram a Goiânia no dia 26, para serem enterrados
no Cemitério Parque.
No enterro, o soldado Santos dava cobertura policial. A
população não queria que os corpos fossem enterrados lá
e, para tanto, se armavam com cruzes de madeira, tijolos,
pedaços de concreto, pedras, e tudo mais que pudesse ser
arremessado contra os caixões, como forma de protesto.
A caminhonete blindada que transportava os caixões
chegou a ser atacada. A multidão, beirando duas mil pessoas,
parecia uma onda furiosa, que vinha rebentar em gritos
de protesto. Eram pessoas, que por falta de informação, ti38
Sociedade do Lixo
nham medo e se uniam para evitar que o cemitério se tornasse
um depósito de lixos radioativos.
Triste e dopada por calmantes, a mãe de Leide, Lourdes
das Neves Ferreira, compareceu ao enterro sem o marido,
Ivo, que estava internado no Rio de Janeiro. Com o apoio
da primeira-dama do Estado na época, Sônia Santillo, conseguiu
se aproximar do caixão da filha, sem ser agredida.
A dor que sentia jamais seria apaziguada. Não deram a ela
o direito de velar sua parente, nem chorar pela filha. Ela só
pôde observar o rosto de Leide pelo vidrinho do caixão.
O trabalho de descontaminação prosseguia mobilizando
centenas de pessoas. Goiânia parecia um campo de guerra,
digno de filme de ação. Com o uso de jatos fortes de água,
telhados, máquinas e ferramentas de trabalho eram lavadas,
purificadas pelo líquido vivificador. Entulhos de casas
demolidas, calçadas, árvores cortadas, asfalto retirado de
ruas contaminadas, animais domésticos sacrificados, sucatas
dos ferros-velhos, todo material que não tinha condições
de reaproveitamento, sendo considerado lixo radioativo,
era embalado, transportado e condensado no depósito
provisório de Abadia de Goiás, a vinte quilômetros de Goiânia.
O soldado Santos, durante mais ou menos quatro meses,
fazia sua via-crúcis de serviço. Ia do quartel ao Centro
de Triagem no Estádio Olímpico com carros de choque,
micro-ônibus, viaturas ou motos. Fazia turnos de 24 horas.
Durante o dia, o sol iluminava o trabalho desse soldado.
À noite, a escuridão não lhe dava motivo para adormecer.
Abrandado pelas luzes artificiais, o breu muitas vezes era
sinônimo de trabalho.
39
Campo estelar no chão terrestre
Em Abadia de Goiás nasciam dois depósitos de superfície
em concreto, fruto de projetos de engenharia específicos
para armazenagem de rejeitos radioativos, assegurando
a blindagem radiológica e a contenção do material, sem
risco de escape para o meio ambiente. Foram mobilizados
244 profissionais da CNEN, 125 da Marinha, Exército, Furnas,
Nuclebras e Nuclei, e 300 pessoas do governo de Goiás,
empresas contratadas, universidade, Defesa Civil do Estado
do Rio de Janeiro e voluntários locais. Tudo isso totalizou,
de acordo com dados da CNEN, 669 pessoas.
Com um custo estimado em 10 milhões de reais, todo
esse processo originou seis mil toneladas de rejeitos radioativos,
constituídos por 1.357 caixas metálicas, oito cilindros
de concreto, 26 contêineres (com 14 tambores de 200
litros). Abadia de Goiás recebia em suas terras uma montanha
radioativa, que por 300 anos guardaria em seu interior,
lacrado, o dano originado por 19 gramas de césio-137: destruição,
caos, medo, infelicidade, preconceito e morte.
O tempo passou. Para prestar assistência médica e social
às vítimas direta e indiretamente atingidas e desenvolver
atividades relacionadas ao acidente, foi criado em dezembro
de 1987, pelo Governo do Estado de Goiás, a Fundação
Leide das Neves Ferreira (FUNLEIDE). Em 1999 houve uma
mudança e a FUNLEIDE foi extinta. Em seu lugar surgiu
a Superintendência Leide das Neves Ferreira (SULEIDE).
Esse órgão separou as vítimas por grupos. O grupo I possui
51 pessoas que foram expostas diretamente, com contaminação
interna e radiolesões e 35 descendentes. Já o grupo
II, formado por vítimas com contaminação menor e sem lesões,
contabiliza 44 pessoas e 28 filhos e netos. E o grupo III,
por sua vez, formado por trabalhadores do acidente, paren40
Sociedade do Lixo
tes, vizinhos sem exposição ou contaminação detectável, é
o mais numeroso e conta com 548 pessoas, sem contabilizar
os parentes. E, nessa história toda, os grupos I e II tinham
direito de assistência até a terceira geração. Já o grupo III,
onde Santos está inserido, ainda luta por seus direitos.
O soldado, que havia trabalhado noite e dia para ajudar
as pessoas, agora era abandonado. Como não havia recebido
roupagem apropriada para atuar na área, teve contato
com o material. Durante anos, Santos juntou calhamaços de
receitas médicas, atestados, laudos e papéis que demonstravam
estado de saúde debilitado, mas de nada adiantaram.
Ele, que sonhava ser oficial da Polícia Militar e bacharel
em Direito, precisou abortar seus planos devido a problemas
de saúde e financeiros. Era saudável, tinha uma vida
em família, passeava, estudava, trabalhava, praticava esportes
sem nenhum problema. Após sua atuação na descontaminação,
parecia que seu mundo, tão normal, ruía. Antes,
participava de maratonas de corrida; agora, de maratonas
hospitalares. Ao invés de medalhas, passou a colecionar
problemas de saúde: diabetes, hipertensão arterial severa,
dislipidemia, insônia, estresse, depressão, lesões na pele.
Para ajudar, teve dois casamentos desfeitos:
— Foi o preconceito – diz.
A contaminação também foi responsável por causar
transtornos financeiros.
— Devido ao divórcio e a separação judicial, foi arbitrada
partilha de bens e pagamento de 30% de meus vencimentos
líquidos de pensão alimentícia. Também tenho
encargos previdenciários, empréstimos e refinanciamentos
bancários. No final de meu pagamento, que é cerca de três
mil reais, me sobram apenas 500, que são para mim e mi41
Campo estelar no chão terrestre
nha filha Kamila, que mora comigo. Esse valor mal cobre
despesas mensais com meu tratamento de saúde.
Além de ter dificuldades financeiras e de saúde, o soldado
tem que arcar com os tratamentos de seus filhos. Ele
explica que sua filha Kamila nasceu com seqüelas físicas,
herdadas por legado genético. No rol de problemas destacam-
se alergias crônicas, hérnia inguinal à direita e gripes
com tosses alérgicas. Seus outros dois filhos – de outro casamento
e que moram com a mãe, em Minas Gerais – vivem
debilitados pela gripe.
Em 2004, percebendo que sozinho não chegaria a lugar
nenhum, uniu-se a outros militares, vítimas da mesma contaminação.
Quem poderia supor que seus amigos Juvenal,
Cleyton, Claudio, Ciro, Valdecir, Manoel, Robson, Diurivê,
Pedro, Suelimar, Sandro, Fabian, Ciro, Ricardo, Jose, Gecimar,
Eliaquim, Antonio, Jesuel, Zoroastro e Elvio, soldados
anônimos, teriam que lutar pelo direito de serem reconhecidos
oficialmente como vítimas da tragédia? Mas tinham
de lutar, e para isso, fundaram a Associação dos Militares
Vítimas de Césio-137 (AMVC-137), cuja assembléia geral
ordinária realizou-se na sede da Associação dos Subtenentes
e Sargentos da Polícia Militar de Goiás, em Goiânia, em
2004.
As reuniões nem sempre eram freqüentes, tendo em vista
que o grupo se mantinha organizado e os integrantes interagiam
entre si. Mas quando o assunto trazia aquele brilho,
aquela embalagem que o configurava como especial e
importante, surgia o edital de convocação. Nos blá-blá-blás
das reuniões eram discutidos os assuntos relevantes da entidade,
elaboravam-se pautas sobre o que ia ser debatido e
também as atas. Era preto no branco!
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Sociedade do Lixo
— Recebemos o apoio de organizações não-governamentais,
como o Greenpeace, ABCcâncer, Associação das
Vítimas do Césio-137, entre outras, lembra o soldado.
Como a AMVC-137 não possui sede própria, geralmente
utiliza as sedes das entidades de classe da Polícia Militar. E
o soldado Santos, primeiro-secretário da associação, precisa
se mobilizar para ajudar nas reuniões. Para otimizar
seu tempo, em casa mesmo, se aconchega na cadeira, liga o
computador e, enfim, está na net. Soube aproveitar as facilidades
do mundo da informática e, assim, criou um blog,
que mantém atualizado com notícias sobre a associação, o
acidente e suas conseqüências.
Recebe e-mails e os responde com a devida rapidez. São
jornalistas, estudantes universitários, de todos os cantos do
Brasil, até mesmo de Coimbra, em Portugal, que querem
saber sobre a história de luta desses militares. As perguntas
meio que se repetem, mas ele não se cansa de responder.
Em abril de 2008, Santos entrou com três meses de licença
especial e um mês de férias. Antes de vencer a licença,
buscou sua aposentadoria por tempo de serviço. Com a
saúde debilitada (e mais de 30 anos de trabalhos prestados
à Polícia Militar de Goiás), aguardava a publicação da tão
sonhada aposentadoria em Diário Oficial, que finalmente
saiu no dia 9 de setembro de 2008. Mas isso não significou
que ele pudesse colocar seu chinelo e descansar.
Nesses anos, o policial deve ter se cansado de contar carneirinhos.
Vítima de insônia, o anoitecer, para ele, não é
sinônimo de sono. A noite não o embala, nem o ajuda a ninar.
Pega os remédios, abre a boca e os engole com um gole
de água. É remédio para PRESSÃO ALTA e para controle de
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Campo estelar no chão terrestre
ansiedade. A fada dos sonhos, se é que existe, aparece só
tarde da noite ou, às vezes, quando está meio afobada, pelas
três da madrugada. Bate a varinha na cabeça de Santos e
ele finalmente adormece – o remédio de ansiedade é o pó
mágico que o faz apagar. O que se passa em seus sonhos?
São nove horas da manhã. Com o regime militar que segue,
acorda, faz o café para a filha Kamila, de onze anos.
Mais uma vez toma remédio contra PRESSÃO ALTA e para
combater a diabetes, enfermidade muda que deixa seu sangue
doce. Tantos problemas de saúde, mas a maratona não
termina. Faz almoço para a filha e para ele. Às vezes, quando
não está tão disposto a cozinhar, varia o cardápio num
restaurante. De novo toma o remédio para controle de diabetes.
Satisfeita, devidamente alimentada, Kamila pega o transporte
escolar, que segue até o Colégio da Polícia Militar,
Unidade Hugo de Carvalho Ramos. Sai de casa às quinze
para o meio dia, retorna às seis e meia da tarde.
No período sem a filha, o soldado segue a rotina:
— Assisto televisão, leio jornais, visito meus amigos nos
quartéis da capital. Vou ao centro da cidade pagar contas
ou fazer compras.
Nessas tardes a solidão, variadas vezes, se transmuta
num sentimento de vazio:
— Quando estou deprimido e muito ansioso, fico em
casa sem sair ou vou ao médico para acompanhamento.
O soldado Santos, que há 21 anos se preparava para trabalhar
“num vazamento de gás” em Goiânia, com seu uniforme
azul-petróleo, cinto preto, coturnos negros e luzidios,
agora, com 46 anos, se transforma num soldado aposenta44
Sociedade do Lixo
do. Veste uma camiseta invisível chamada luta, tecida com
a esperança de ser reconhecido oficialmente como vítima
do acidente com césio-137, um acontecimento que marcou
e ainda deixa marcas em todos os que tiveram, de alguma
forma, algum tipo de contato com a tal estrelinha azul.

FONTE:"http://www.tecnoambi.com.br/joomla/docs/sociedade_do_lixo.pdf"



Parabéns Pai, pelo seu digníssimo trabalho filantrópico que exerce acompanho de perto sua honrada   Luta
 em prol dos Militares Vítimas do Césio-137, o Senhor e toda sua Equipe que trabalharam na Missão do Césio-137 em Goiânia-GO estão de Parabéns, pelo Honrado Êxito nessa Árdua Missão!

Pois o Senhor e todos os Colegas Militares que trabalharam na Descontaminação pelo elemento radioativo Césio-137 de Goiânia,exerceram Atos: Humanitários, Pacíficos, Heroícos e Históricos!

Merecida é está Promoção Por Ato de Bravura de todos Policiais Militares, Bombeiros Militares, aos Honrados Militares do Estado de Goiás,que doaram suas vidas para salvar vidas de terceiros, hoje tendo sérias sequelas pelo acidente, porém não abaixaram a sua Auto estima , firmes e fortes em fé a missericórdia de Deus chegaram á todos ,os sofrimentos sim irá amenizar , Deus irá abençoar que o seus Direitos vai se realizar, eu Escritora Kamila Tavares de Almeida tenho fé em Deus ,não desistam o mundo irá ver que existe Heróis no nosso querido Estado De Goiás-GO- Brasil!

No Nosso País Brasil há honrados Heróis que não se esconderam da Luta assumiram seus Postos, Lutam e sim Venceram está Árdua Missão Heróis , o BLOG LITERATURA POÉTICA , tem grande reconhecimento pelo Brilhante trabalho que exerceram para salvar a sociedade Goiana em 1987!

A Causa do Césio com Grande nós temos grande atenção e admiração em grau de solidariedade demontrar aos Hérois do Césio-137, Parabéns, Militares , Bombeiros vítimas do Césio-137, tenha um enorme reconhecimento pela Escritora Kamila Tavares de Almeida.

Merecido reconhecimento á vocês Senhores Policiais Militares Vítimas do Césio-137, Parabéns!

Pai Santos Francisco de Almeida eu tenho muito orgulho por ser sua filha, te admiro em ter um Grande Heroí ao meu lado, Parabéns pela Glória de sua Luta, Deus irá lhe recompensar muito tenha certeza, Deus está contigo!

Parabéns á todos Guerreiros Militares Vítimas do Césio- 137!

Atenciosamente:

Kamila Tavares de Almeida.

Escritora