segunda-feira, 4 de abril de 2016

A HISTÓRIA DO SOLDADO QUE LUTA PELO SEU RECONHECIMENTO




3Analúcia NevesJuliano SchiavoLucas ClaroSociedade do Lixo

7ApresentaçãoLixo. Palavra de quatro letras, duas sílabas e váriosdesdobramentos. Para uns é apenas algo que nãotem utilid...
de uma sociedade que, costumeiramente, vive esquecida,deixada de lado: a Sociedade do Lixo.Nesse mundo,é possível encontra...
9Em oficina improvisada, lixo vira ajuda ..............................13Campo estelar no chão terrestre ....................
Carioca, sua oficina e os eletroeletrônicos salvos do lixo - Brotas/SPAnalúciaNeves
13Com criatividade, morador deBrotas/SP transforma lixo em alter-nativa de renda para ong do câncerEm oficina improvisada,...
14Sociedade do Lixoda família estará garantido. Com a ajuda do despertador, ofuncionário público levanta às cinco horas. F...
Em oficina improvisada, lixo vira ajuda15compreender o motorista, pois seu trabalho o coloca diaria-mente frente-a-frente ...
16Sociedade do Lixoda cobertura original). É o resultado do consumo desen-freado, que estimula a extração de matéria prima...
Em oficina improvisada, lixo vira ajuda17com voz forte e convicta das facilidades que o comércio atualoferece na compra de...
18Sociedade do Lixo100% de seu esgoto coletado e tratado.Ainda não são dez horas e a metade do trajeto da coleta daárea ce...
Em oficina improvisada, lixo vira ajuda19paredes construiria prateleiras, pois ferramentas não lhe fal-tavam.No dia do ace...
20Sociedade do Lixo— Às vezes tenho vontade de limpar o porão, sumir comtudo de lá.Quase não dá pra abrir a porta.O que a ...
 Em oficina improvisada, lixo vira ajuda21tureza. Meu marido é um homem simples, bom. Preocupadocom os outros e curioso, ap...
 22Sociedade do Lixonão têm destinação adequada em 3.406 municípios.Só na cidade de São Paulo,são geradas doze mil tonelada...
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 Montanha de lixo radioativo: rejeitos do acidente em Goiânia/GO (1987)BrigitteLuizaGuminiak
 27Juliano SchiavoA história do soldado que luta peloreconhecimento como vítima docésio-137Campo estelar no chãoterrestreAc...
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 32Sociedade do Lixona rua P 19, lote 4. Sem que o marido soubesse, Maria Ga-briela, já desconfiada, colocou em meio aos pe...
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 35Campo estelar no chão terrestreLá havia astronautas, com macacões impermeáveis,luvas, botas descartáveis, máscaras com f...
 36Sociedade do Lixoteve contatos imediatos de primeiro grau com os astronau-tas terrestres. Goiânia parecia tornar-se um c...
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 39Campo estelar no chão terrestreEm Abadia de Goiás nasciam dois depósitos de superfí-cie em concreto, fruto de projetos d...
 40Sociedade do Lixotes, vizinhos sem exposição ou contaminação detectável, éo mais numeroso e conta com 548 pessoas,sem co...
 41Campo estelar no chão terrestrenha filha Kamila, que mora comigo. Esse valor mal cobredespesas mensais com meu tratament...
 42Sociedade do Lixo— Recebemos o apoio de organizações não-governa-mentais, como o Greenpeace, ABCcâncer, Associação dasVí...
 43Campo estelar no chão terrestreansiedade. A fada dos sonhos, se é que existe, aparece sótarde da noite ou,às vezes,quand...
 44Sociedade do Lixodo. Veste uma camiseta invisível chamada luta, tecida coma esperança de ser reconhecido oficialmente co...
 Alimentos recolhidos no final da feiraLucasClaro
 47Lucas ClaroLimeirenses driblam a fomecom inteligência, boa vontade esolidariedade dos feirantesXepa nossa de cada diaFom...
 48Sociedade do Lixobalha há 14 anos no local e já está habituada a mexer comos alimentos.Alguns deles como frutas,verduras...
 49Xepa nossa de cada dialescente moreno, camiseta vermelha e shorts, vem subindo,caminhando em direção a perua que carrega...
 50Sociedade do Lixodos por ela são aqueles que possivelmente irão estragarnos próximos dias. Eles ficam ali até serem leva...
 51Xepa nossa de cada diate buscar os peixes que não foram vendidos. Eles vão voltarpara câmara fria. Diego Oliveira e Robs...
 52Sociedade do LixoO motorista Arlindo de Oliveira, senhor de 57 anos, tra-balha semanalmente com entregas e, aos finais d...
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 55Xepa nossa de cada dianário (do Lar) me falou que quando ele comia nossa ma-carronada com o molho não fazia mal. Mas se ...
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 63Vida no lixoxar seu filho, o levava em seus braços, para apanhar tudoque pudesse ser útil.Esse problema persiste. As mãe...
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 79A Casa, a kombi, dois cães e um vegetarianode 115 mil toneladas por dia. Se esses rejeitos fossem co-locados de uma só v...
 Sociedade do lixo
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  1. 1. 3Analúcia NevesJuliano SchiavoLucas ClaroSociedade do Lixo
  2. 2. N518 NEVES,Analúcia Sociedade do lixo / Analúcia Neves; Juliano Schiavo;Lucas Claro. – Limeira: s.d.e., 2008. 120 p. Ilust. 1. Schiavo, Juliano. 2.Claro, Lucas. I. Título. CDD. 070Ficha CatalográficaTrabalho de Conclusão de CursoCurso de Jornalismo do Isca FaculdadesDiretora geral do Isca FaculdadesProfa. Rosely Berwerth PereiraCoordenadora do Curso de JornalismoProfa. Milena de Castro SilveiraProfessora OrientadoraProfa. Milena de Castro SilveiraAutoresAnalúcia Neves, Juliano Schiavo, Lucas ClaroProjeto GráficoJuliano SchiavoEditoração EletrônicaJuliano SchiavoFotografiasAnalúcia Neves, Brigitte Luiza Guminiak,Edivaldo da Silva Alves, Juliano Schiavo, Lucas ClaroFoto de CapaEdivaldo da Silva Alves
  3. 3. 7ApresentaçãoLixo. Palavra de quatro letras, duas sílabas e váriosdesdobramentos. Para uns é apenas algo que nãotem utilidade. Para outros, esse rejeito se converteem dinheiro, arte, algo que pode e deve ser reutilizado.Depende do ponto de vista. E é para mostrar os desdo-bramentos que o lixo possui numa sociedade, que esselivro surgiu.Fruto de um trabalho de conclusão de curso de jorna-lismo, seis histórias reais revelam, em suas linhas, o retrato
  4. 4. de uma sociedade que, costumeiramente, vive esquecida,deixada de lado: a Sociedade do Lixo.Nesse mundo,é possível encontrar personagens que tra-zem a história dos que lutam para ser reconhecidos comovítimas de um acidente com lixo radioativo. Ou ainda, verque do lixo de uns, há famílias que sobrevivem e conse-guem melhores condições de vida. Um olhar mais apuradopermite observar um ciclo: da xepa das feiras ao prato deuma criança. É uma sociedade invisível, que se expõe emforma de reportagens jornalísticas.Outras personagens revelam que um eletrodomésticoquebrado pode ser transformado em algo útil. Basta umaboa dose de vontade, paciência e criatividade. Já na ques-tão da consciência ambiental, um saco plástico não é ne-cessariamente algo que deve ser jogado fora: ele pode setransformar numa bolsa e gerar renda.E de renda,há quementenda: o lixo pode criar impérios, basta visão e investi-mento.E nessa linha, sempre com um pano de fundo tecidocom lixo, histórias se revelam e se abrem em reportagenscom dados atuais e que deixam alguns questionamentos:por que não diminuir o consumo desenfreado dos recur-sos naturais? Chegará o momento em que, sem lugar para“esconder” o lixo da visão humana, ele contracenará com opôr-do-sol? É parar para pensar. E ler também. Boa leitura.
  5. 5. 9Em oficina improvisada, lixo vira ajuda ..............................13Campo estelar no chão terrestre ..........................................27Xepa nossa de cada dia ..........................................................47Vida no lixo .............................................................................61A Casa, a kombi, dois cães e um vegetariano .....................77Lixo é dinheiro ......................................................................95Fontes de consulta .................................................................109Agradecimentos.....................................................................119Sumário
  6. 6. Carioca, sua oficina e os eletroeletrônicos salvos do lixo - Brotas/SPAnalúciaNeves
  7. 7. 13Com criatividade, morador deBrotas/SP transforma lixo em alter-nativa de renda para ong do câncerEm oficina improvisada,lixo vira ajudaAnalúcia NevesPara a maioria dos moradores da pacata cidadezinhado interior paulista, o motorista do velho caminhãoazul da coleta de lixo não passa de mais um residen-te, entre tantos que se misturam aos 22 mil habitantes dolugar.O morador do número 455, da Rua Angelo Piva, tem to-das as manhãs a mesma rotina, o que de certa forma o con-forta. Sabe que será mais um dia de trabalho, o sustento
  8. 8. 14Sociedade do Lixoda família estará garantido. Com a ajuda do despertador, ofuncionário público levanta às cinco horas. Faz sua higienepessoal e se mete dentro do uniforme verde esmeralda opa-co, já desbotado pela ação do sabão da lavagem,porém,bemlavado e passado cheirando a amaciante de roupas, carinhoda companheira de anos.Calça as botinas igualmente surra-das pelo uso diário. Rapidamente toma seu café, se despedede todos e segue para a labuta diária.Afinal, quem é esse? Sergio Roberto do Amaral Menezes,para os mais chegados, simplesmente Carioca. Casado, 64anos, pai de três filhos, funcionário público, há dez dirigeo caminhão que recolhe o lixo em Brotas, cidade a aproxi-madamente 250 km da capital paulista. Homem simples quegosta de fixar seu olhar dentro dos olhos das pessoas quan-do conversa, sua expressão é séria e marcada pelo cansaçodo cotidiano. É de estatura alta, magro, mãos grossas e cale-jadas, possui cabelos encaracolados já grisalhos, até poucosanos atrás castanhos escuros. Os olhos verdes brilham facil-mente, quando fala da importância de ser um ser humanoresponsável pelas ações ambientais e do cuidado que cadapessoa deveria ter com o lugar que escolhe para viver.Quando o assunto é natureza, tudo está na ponta da lín-gua. É fácil de perceber que, em suas respostas, não está so-mente uma opinião formada sobre as questões ambientais,mas palavras que revelam os sentimentos de um observadoratento a tudo o que é ligado ao meio ambiente.Por trás da humildade e simplicidade de uma pessoa depoucas letras, de uma infância sem estudo e muito trabalho,igual a tantos cidadãos brasileiros, que ajudam a família acompletar a renda, se esconde um homem preocupado como meio ambiente e em especial com os rumos que o consu-mo está tomando, tanto em Brotas como no mundo. É fácil
  9. 9. Em oficina improvisada, lixo vira ajuda15compreender o motorista, pois seu trabalho o coloca diaria-mente frente-a-frente com essa cruel realidade.A inquietação de Carioca é fundamentada na coleta dolixo de Brotas. Mas a realidade é ainda mais preocupante.De fato, a sociedade moderna desenvolveu uma capacida-de de consumir em proporções alarmantes, que configuranão só o estilo de vida adotada numa cultura que tem omodelo e potencial econômico como sua identidade, mastambém uma ferramenta importante para a construçãodos conhecimentos.As pessoas são induzidas estrategicamente a gastar emritmo frenético. A mídia e publicidade seduzem, manipu-lam os desejos das pessoas,que são‘sonhadoras’ e acabamadquirindo produtos necessitando ou não deles. O consu-mismo é o motor da economia.Para entender melhor a estratégia de venda das indús-trias é só observar a quantidade e a diversidade de lixosgerados nos dias de hoje e constatar que, além de ser pre-judicial ao meio ambiente, também é um potencial econô-mico e energético que está sendo desperdiçado.O desejo de ver o Brasil como potência mundial favore-ce a farra das indústrias no quesito ‘propaganda’, porém,o custo para o meio ambiente tem sido danoso pela faltade ausência de políticas públicas, inclusive no que diz res-peito à destinação final dos resíduos sólidos. Ong’s e uni-versidades brasileriras dizem a todo momento que quasenão há mais espaço para depositá-lo e o seu acúmulo con-tamina os solos, rios, mares e lençóis freáticos.Um exemplo do que está nas mídias brasileiras, quaseque diáriamente, é a devastação dos biomas (diversidadede ecossistemas), como os mangues, a Amazônia, e a MataAtlântica, hoje fragmentada (com aproximadamente 15%
  10. 10. 16Sociedade do Lixoda cobertura original). É o resultado do consumo desen-freado, que estimula a extração de matéria prima-bruta, sempensar na degradação do meio ambiente.Outro exemplo vem dos jornais de Campinas, cidade commais de um milhão de habitantes, que vive essa realidade denão ter onde depositar suas 800 toneladas/dia de lixo coleta-do. Parte dos resíduos é enviada para os aterros sanitários decidades vizinhas, como Paulínia, Santa Bárbara, Cosmópolis eo Lixão da Pirelli.A outra parte vai para o aterro Delta A, queestá proibido pela Cetesb (Companhia de Tecnologia d Sanea-mento Ambiental) desde o início de Setembro,por apresentarcapacidade máxima e danos ao meio ambiente.Apesar da pouca atenção dos governantes com relação aoassunto de lixo,a ABNT (Asociação Brasileira de Normas Téc-nicas), orgão responsável pela normatização técnica no País,fornece a base necessária ao desenvolvimento tecnológicoque, entre outros assuntos, tem participação importante parao processo de forma sustentável. O relatório que trata do as-sunto responsabilidade socioambiental traz a classificação dolixo:normaABNTNBR10004,classificaçãoderesíduossólidos,que segue o critério dos riscos potenciais ao meio ambiente.Ela classifica o Lixo Classe I como resíduos sólidos peri-gosos, com potencial de risco à saúde pública e ao meio am-biente,são inflamáveis,corrosivos,tóxicos,reativos ou atraemdoenças, exemplo disso é o lixo hospitalar. Já o Lixo Classe IIsão substâncias não-inertes e apresentam propriedades comobiodegradabilidade, solubilidade ou combustão. São as maté-rias orgânicas e papéis entre outros. Por fim o Lixo Classe IIIsão as substâncias inertes,como rocha,tijolos,vidros e certosplásticos e borrachas que não são decompostos prontamente.Mesmo sem tomar conhecimento dessas classificações,Ca-rioca tem razão em se preocupar.Na cabine do caminhão,fala
  11. 11. Em oficina improvisada, lixo vira ajuda17com voz forte e convicta das facilidades que o comércio atualoferece na compra de qualquer aparelho eletrônico.A mão es-querda segura o volante e, com o braço direito, gesticula for-temente com a mão fechada.Sem desviar a atenção do trajetoque está sendo percorrido, nem se distrair do trabalho, poisé preciso parar em frente de quase todas as casas e lojas dasruas centrais,ele dispara:— Tudo hoje é diferente! É bom que as pessoas possam terde tudo.Agora,a rapidez das fábricas para produzir esses apa-relhos eletrônicos é incrível! Mais incrível ainda é a rapidezcom que eles ficam ultrapassados.O motorista pára o caminhão no cruzamento de duas ruas,olha para os lados,engata a primeira marcha,acelera.Segue ocaminho.A conversa prossegue:—Tem gente que só quer o mais moderno.Me assusto coma quantidade de aparelhos que as pessoas jogam fora. Brotastem muita gente assim: louca por coisas novas. Alguns atédoam ou vendem os aparelhos antigos. Mas, infelizmente, amaior parte ainda vira lixo.E coloca lixo nisso! Dois caminhões recolhem em Brotas15 toneladas diárias, o que dá aproximadamente 700 gramas,quase um saco de um quilo de feijão, por habitante. Por seruma cidade de pequeno porte do interior de São Paulo, noquesito‘aterro sanitário’ Brotas foge das demais do seu porte,pois a maioria deposita seus dejetos em lixões, ou mandampara aterros das cidades maiores da redondeza.O aterro sanitário impede que as águas subterrâneas e osolo sejam contaminados pelo chorume (líquido altamente tó-xico produzido pela decomposição dos resíduos sólidos). Eleé coletado e encaminhado à estação de tratamento de esgoto,que depois de tratado e lançado no Rio Jacaré-Pepira,um dosúnicos do estado de São Paulo totalmente limpo. Brotas tem
  12. 12. 18Sociedade do Lixo100% de seu esgoto coletado e tratado.Ainda não são dez horas e a metade do trajeto da coleta daárea central da cidade já está cumprida. É preciso ainda levartodo o lixo recolhido até o aterro e depois voltar para continu-ar a coleta até a hora do almoço.Chegando ao aterro, o motorista desce do caminhão e aju-da os companheiros a acomodar toda a carga recolhida nasvalas. O sol está quente, o suor desce pelo rosto, a pele ficaavermelhada.O trabalhador não se queixa.Como é motorista,poderia esperar sentado na cabine do caminhão,mas isso nãofaz parte da sua índole.De volta ao trajeto, todos se acomodam, nós na cabine eos demais trabalhadores na carroceria. Tomamos o rumo dacidade. Retomamos o assunto: logo que Carioca começou atrabalhar na coleta, entendeu que o lixo tem a ver com a vidade todos, e passou a refletir sobre o valor de tudo que é joga-do fora.Nos primeiros dias,dessa atitude que já completa dezanos, Carioca ficou impressionado com a quantidade de ele-trodomésticos (ferros elétricos, tanquinhos, liquidificadorese outros tantos) descartados, que, com poucos reparos, nova-mente seriam utilizados.Nasceu então a idéia de consertá-los e doá-los ao GrupoVoluntários do Câncer de Brotas, organização não-governa-mental que ajuda os doentes de câncer carentes da cidade.Afinal,para Carioca, lixo é mais do que dinheiro: pode ajudaralguém.A decisão de consertar os aparelhos foi tomada.Até então,tudo era fácil, somente no plano das idéias. E que belas idéiastinha Carioca. O próximo passo foi tarefa difícil: convencer amulher a aceitar que os tais aparelhos encontrados no ‘lixo’fossem levados para casa. Em sua mente, tudo estava bemarquitetado. O porão seria transformado em oficina. Junto às
  13. 13. Em oficina improvisada, lixo vira ajuda19paredes construiria prateleiras, pois ferramentas não lhe fal-tavam.No dia do acerto com a companheira,as horas demorarama passar. Ao cair da tarde já não conseguia esconder a ansie-dade, visivelmente estampada nos olhos. Só lhe faltava tomarcoragem para a tão esperada conversa. Ela iria se interessarpelo assunto? Se importar que ele utilizasse o porão? Cariocalembra que respirou fundo. Tomou coragem. Falou com a es-posa,com riqueza de detalhes.Vergínia Aparecida Menezes, dona de casa dedicada, gostade receber o marido,depois do dia de trabalho cansativo coma casa limpa e arrumada.Depois da conversa o motorista respirou aliviado. Pronto,tinha falado! A companheira achou que demoraria até o pro-jeto inusitado começasse a tomar forma.Precisaria arrumar oporão para receber os“lixos”.Afinal,ainda não estava conven-cida o suficiente para aceitar a proposta do marido.De repente, ouviu um barulho. Vergínia olhou assustadapara o caminhão.Os colegas de coleta do marido tirava da car-roceria um tanquinho, um liquidificador, um espremedor delaranjas e dois ferros de passar roupas.Para ela,todos aquelesequipamentos não passavam de lixo.Tudo foi levado e acomodado no porão. Vergínia conhecebem o marido,logo imaginou que não adiantava contrariá-lo.Aquela atitude não seria em vão,mas para fazer o bem.Vergínia, senhora de estatura média, magra, pele clara,olhos escuros, cabelos curtos e lisos, com umas poucas rugasno rosto,apesar das olheiras salientes que denunciam seus 58anos, fala do assunto demonstrando acanhamento. Tambémdá a impressão de queria esconder a desaprovação da atitudedo marido, por causa da bagunça segundo ela que se instau-rou no porão. Com a voz embargada, tira o sorriso do rosto ereclama:
  14. 14. 20Sociedade do Lixo— Às vezes tenho vontade de limpar o porão, sumir comtudo de lá.Quase não dá pra abrir a porta.O que a esposa do motorista não imagina é que qualquerlixo derivado de eletrodomésticos, eletroeletrônicos e celu-lares, justamente aqueles que seu marido não deixa seremabandonados na natureza, são os chamados e-lixo. Todos es-ses equipamentos possuem metais pesados, que, descartadosno lixo comum, entram em decomposição e as substânciasquímicas penetram no solo, entram em contato com lençóisfreáticos e contaminam plantas por meio da água.Como, além do mais, as plantas e animais fazem parte daalimentação do ser humano, os danos da decomposição dassucatas eletrônicas são terríveis. Trata-se de produtos quími-cosaltamentetóxicosomercúrio,aosertocadoeinalado,podecausar alterações genéticas, distúrbios renais e neurológicos;o cadmo é um agente cancerígeno, afeta o sistema nervoso,provoca dores reumáticas e problemas pulmonares; o zinco,se inalado, causa vômitos, diarréias e problemas pulmonares;o manganês pode resultar em anemia, dores abdominais, se-borréia, impotência, perturbações emocionais e tremor nasmãos; o chumbo afeta diretamente o sistema nervoso central;e o cloreto de amônia,quando se acumula no organismo,pro-voca asfixia.Vergínia pára um instante.— Mas aí penso que esse trabalho do meu marido é poruma boa causa.A feição da esposa dedicada aparece novamente, ao falardo companheiro de tantos anos.Seus olhos se enchem d’água.Desvia o olhar, morde os lábios e não permite que nenhumalágrima role pelo rosto.Pisca demoradamente,abre um sorri-so aberto e carinhosamente:— Não precisa ter curso de faculdade para cuidar da na-
  15. 15. Em oficina improvisada, lixo vira ajuda21tureza. Meu marido é um homem simples, bom. Preocupadocom os outros e curioso, aprendeu tudo sozinho. Tem prin-cípios. Sei bem que esses valores, esse jeito dele é a melhorherança que nossos três filhos já receberam do pai.O brilho dos olhos negros saltava-lhe da face avermelhada.O sol da tarde que penetrava pela janela da sala trouxe um arde melancolia.Vergínia conta que, nas tardes de sábado e aosdomingos, depois da missa, Carioca coloca uma roupa velha,que fica sempre pendurada atrás da porta do quarto do casal,e desce para trabalhar nos consertos.Separar as peças.As quetêm utilidade e podem ser aproveitadas são limpas.As demaissão acomodadas numa caixa e doadas os catadores, que asvendem como sucatas. O marido, na visão de Vergínia, é umapessoa abençoada e,é fácil perceber tal virtude dele.— Meu marido conserta tudo aquilo que ninguém maisquer,porque sabe que,assim,ajuda pessoas doentes.Carioca passa horas em sua oficina improvisada. Nessesmomentos, deixa de ser o pai, o marido, o motorista.Vira vo-luntário de uma boa causa.Um ambientalista que ainda não se deu conta desse título.Na sua opinião a consciência ecológica não depende só dogoverno.É uma questão de educação.Ele sabe bem da impor-tância do seu gesto em prol do meio ambiente e fala com se-renidade:—A natureza pede muito pouco do ser humano.Basta mu-dar os hábitos. Faço o que posso e acredito que a reciclagempode também dar emprego para muita gente.Carioca está certo. De acordo com a Abrelpe (AssociaçãoBrasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Espe-ciais), anualmente são produzidas 61,5 milhões de toneladasde resíduos urbanos nos 5.563 municípios brasileiros. Dessetotal de resíduos 54,4 milhões de toneladas são coletados,mas
  16. 16. 22Sociedade do Lixonão têm destinação adequada em 3.406 municípios.Só na cidade de São Paulo,são geradas doze mil toneladas/dia de lixo e, apenas 5% são reciclados. Já em Brotas são re-colhidos, em média, quinze toneladas/dia de resíduos sólidos.Destes, a APAE do município recicla em torno de15% no cen-tro de triagem montado na sede da entidade.Isso significa quesó essa entidade contribui com a retirada 3,5 toneladas por diado solo da cidade.Brotas também faz parte das 1.971 cidades brasileiras quecontam com 100% de coleta seletiva.Algumas já usufruem deparcerias entre cooperativas de catadores, iniciativa privadae o Poder Público. Cerca de 800 mil pessoas sobrevivem dacatação de reciclados, com renda média de um a um e meiosalários mínimos.Hojeacataçãoéumaatividadeeconômicainstaladanopaís.A Associação Brasileira de Alumínio (ABAL) observa de pertoa importância desse trabalho e, de acordo com a entidade, oíndice de reciclagem no Brasil vem aumentando consideravel-mente. Exemplo disso é que a reciclagem de latinhas chega a95% das que são colocadas no mercado brasileiro para seremvendidas.Além disso,é responsável pela economia de 700 miltoneladas de bauxita, matéria-prima da alumina, compostoquímico de alumínio e oxigênio que dá origem ao alumínio.Na oficina, Carioca está entre seus equipamentos. Ele de-monstra expressão séria, ao falar que os catadores de Brotasvalorizam somente os materiais nobres,como papelão,garra-fas PET, alumínio e cobre. Outros recicláveis, por sua vez, sãodeixados de lado e enterrados.— Isso acontece por falta de uma cooperativa e de escla-recimento à população. De uma boa administração por partedos políticos, mas as pessoas também precisam prestar aten-ção, quando o assunto é ecologia. Controlar o lixo de casa fazmuita diferença.É fácil fazer isso.
  17. 17. Em oficina improvisada, lixo vira ajuda23Carioca lembra do projeto de lei número 2061/07 que tra-mita na Câmara dos Deputados, em Brasília, desde janeiro de2007. Ela estabelece critérios para a coleta, reciclagem e des-carte de aparelhos eletrodomésticos,eletrônicos e componen-tes (pilhas, baterias etc.) que não podem ser reutilizados. Epropõe que fabricantes ou importadores sejam os responsá-veis por todo esse processo e pelo destino final de seus equi-pamentos. Resta agora o bom senso para colocá-lo na pautaser debatido e votado.As pessoas de Brotas se referem ao Carioca com orgulho.A vice-presidente da ONG Grupo Voluntários do Câncer deBrotas, Rita Flávia Brino Cassaro, esposa do ex-prefeito, nãolhe poupa elogios. Senhora de cabelos brancos, fala mansa epausada,goza de credibilidade na cidade.Pelo tom de sua voz não esconde o orgulho e gratidão quesente pelo motorista,inclusive financeira para os exames e re-médios, cuja renda vem principalmente da solidariedade dapopulação e dos voluntários.— A contribuição do Sergio é fundamental para o grupo.Além de reduzir o volume do lixo, de restaurar os utensíliospara vender, também prepara até mesmo os que as pessoasdoam. Sugere preços de venda. Dificilmente alguém reclama.A procura é grande. Ele é exemplo de desenvolvimento sus-tentável,pois tira o lixo da natureza e presta ajuda voluntária.Pratica cidadania em favor da população carente.A sede da ONG fica em frente à casa de Carioca.Basta atra-vessar a rua.Cliente fixa da loja da ONG é Silvia deAbreu,donade casa de classe média, que já comprou vários utensílios dolugar. Tanquinhos, chuveiro, ferram de passar roupas e um li-quidificador são algumas das suas aquisições.— Não tenho do que reclamar. O conserto fica ótimo. Sér-gio trabalha muito bem, tudo que tenho está como novo! E oque é melhor: pago bem pouco!
  18. 18. 24Sociedade do LixoCalcula-sequeaté2016serãogerados7,4milhõesdetonela-das de e-lixo no Brasil por ano.Hoje,quando alguém opta peloconsumo responsável desses produtos eletrônicos, ao descar-tá-los não há muitas alternativas,pois infelizmente o descarteainda é um problema para os consumidores.Já os fabricantes,em muitos casos,tiram da linha de produção os modelos commenos recursos em relação aos novos lançamentos,tornandocom tempo, a obtenção de peças de reposição inviável. Alémdisso, o custo do conserto geralmente é alto em relação a umaparelho novo.São poucas as empresas no Brasil que fazem a reciclagem,mas cobram por esse serviço.É possível,ainda,doar a geladei-ra usada, celular e computador antigo. Porém, esses equipa-mentos só são aceitos se estiverem em bom estado de uso e seo modelo ainda for atual.Pensar como será o descarte futuro do aparelho adquiridoé dever de cada consumidor. Assim lucra o ambiente e a ge-ração futura, que será beneficiada por ações responsáveis dopresente.Se não for dessa maneira é puro consumismo!O mundo precisa de mais “sérgios cariocas”. Só assim po-derá não se tornar um grande lixão!
  19. 19. Montanha de lixo radioativo: rejeitos do acidente em Goiânia/GO (1987)BrigitteLuizaGuminiak
  20. 20. 27Juliano SchiavoA história do soldado que luta peloreconhecimento como vítima docésio-137Campo estelar no chãoterrestreAcordou e encheu os pulmões de ar. Nascia um novodia e com ele uma história. O jovem, com seus 25anos, mal sabia o que era o elemento césio-137 enem imaginava os problemas que lhe causariam no futuro.Vestia uniforme azul-petróleo, que lhe recobria todo o cor-po. As calças, azuis também, eram abraçadas por um cinto
  21. 21. 28Sociedade do Lixopreto, que traçava uma linha divisória entre o tronco e aspernas. Os coturnos negros e luzidios, como duas grandesbocas abertas e sedentas de fome,abocanhavam os pés.Eraa antropofagia em pessoa: a autoridade engolia o civil.O próprio nome já se mascarava com um ar de autorida-de: de Santos Francisco de Almeida, só o Santos sobrevivia.Com uma agulha hipodérmica invisível, lhe era injetada afunção: soldado da Polícia Militar, acrescido daquele termodos iniciantes: recém-formado.Vai, Santos! Vai! Chegou a hora de arcar com a Pátria, aPátria amada! Está na hora de servi-la.E ele,como um bomsoldado – o soldado que serve e morre por ti, Pátria amada– rumou ao seu desígnio. Seis horas da matina, o quartel jáo esperava. O dia ia ser duro.Era setembro! Mais precisamente 1987, que deveria serconhecido como o ano das estrelas. Isso mesmo: foi a pri-meira vez que uma Supernova (nome dado aos corpos ce-lestes surgidos após as explosões de estrelas) era estudadacom aparelhagem moderna. Com o nome de Shelton Sn1987A, essa Supernova foi a virgem que ajudou os astrôno-mos de todo mundo a fortalecer ou eliminar as teorias queestudam a expansão do universo.Mas era no Brasil que a primeira pessoa segurava umaoutra estrela diminuta. Uma estrela azul e mortal. PobreLeide das Neves Ferreira, menina sorridente, que, por des-conhecer o perigo, tocou a estrelinha.— Titia vem cá ver a pedra alumiante que o papai trou-xe.Com suas pequeninas mãos, Leide agarrou a tia LuísaOdete Mota dos Santos. Como toda criança que descobre
  22. 22. 29Campo estelar no chão terrestrealgo novo,tão surpreendente,foi serelepeando até o quarto.Apagou a luz e, no chão, o céu se abria como num tapetepersa das mil e uma noites. As estrelinhas jogavam sobreos olhares ávidos de Leide, de seis anos de idade, sua luzazul-mortal.Quem poderia imaginar que podia existir umacoisa daquela?Ninguém imaginava. Nem mesmo Roberto dos Santos eseu amigo Wagner Mota, sucateiros, podiam imaginar isso.Naquela tarde de domingo, 13 de setembro de 1987, o solera o mesmo. A vida continuava a mesma. O calor, daquelatarde,também.Tudo parecia ser a mesma coisa em Goiânia,exceto o dinheiro que viria com a venda de chumbo pro-veniente de um aparelho de teleterapia encontrado entreas avenidas Tocantins e Paranaíba, no centro de Goiânia,capital de Goiás. Lá funcionara, até 1985, uma clínica de ra-dioterapia que agora estava abandonada. Mas nenhum dosdois sucateiros sabia do perigo.Com a força que brotava de seus músculos, os dois er-gueram uma das partes do aparelho. O carrinho de mão,com sua rodinha que girava sua volta de 360 graus e sus-tentava uma peça com mais de cem quilos, foi cambaleantepelas ruas,até repousar na moradia de Roberto.Número 68da Rua 57, no Setor Central.No quintal da singela casa, as marretas entraram emação. Tof, tof, tof. Talvez barulhos agudos, abafados, nãohá como saber. Eram apenas barulhos de ferramentas, queiam liberando, pedaço a pedaço, a Caixa de Pandora. Com aforça dos dois sucateiros, as partes se partiam. Partia tam-bém a janela de irídio, que protegia a cápsula mortal, onderepousavam 19 gramas de césio-137 – algo tão pequeno,que cabia na palma da mão.
  23. 23. 30Sociedade do LixoEra como se uma borboleta, tão bem protegida por seucasulo, tivesse sido libertada ao mundo. E, com a liberda-de, suas asas azuis-mortais debatiam-se silenciosamente,como se participassem de uma dança que, mais tarde, tra-ria tristeza,medo e morte.No mesmo dia,os sucateiros Ro-berto e Wagner já sentiram os sinais de corpos debilitados:náuseas, tonturas e vômitos.A contaminação expandiu-se, carregada nos corpos,vestes e calçados daqueles que tiveram contato com suaspartículas. Até aquelas pessoas que foram irradiadas pelosraios alfa e beta do material radiativo tornaram-se expoen-tes da contaminação.Tudo ocorreu silenciosamente e numa rapidez tão gran-de multiplicou-se, quando, retirado do quintal da casa deRoberto, no dia 18 de setembro, o material foi transferidopara o ferro-velho I, na Rua 26-A, Setor Aeroporto. Esse fer-ro-velho pertencia a Devair Alves Ferreira.Wagner acompanhou a transação comercial. “Deu 128quilos, mas ele [Devair] só pagou 120. Aí pegamos os 1.800cruzados [equivalente a cerca de 70 reais],chegamos lá forae repartimos o dinheiro. Eu fui pra minha casa e Robertofoi pra dele”.No ferro-velho I, o material foi aberto por dois funcio-nários e deixado de lado.Seu brilho encantador e mortal sóse revelaria à noite, quando o proprietário do local, Devair,ao perceber algo diferente, tomou a si a peça que emanavaum brilho. Atraído, como que por magnetismo, o homempensou estar diante de um material sobrenatural e o levoupara sua residência. Hospedava, assim, o inimigo dentro decasa.Nos três dias seguintes à descoberta, maravilhado com
  24. 24. 31Campo estelar no chão terrestreseu“brinquedo”deluzbrilhante,odonodoferro-velho,como auxílio de uma chave de fenda,socializou o pó oriundo dacápsula com amigos, vizinhos e parentes. Muitos passavamo pó no rosto, comemorando, fazendo festa. O brilho azulera uma sereia, cujo canto traduzido visualmente encan-tava a todos. Devair e sua mulher, Maria Gabriela Ferreira,ignoravam até então o fato de apresentarem cefaléias e vô-mitos, sintomas iniciais da contaminação.Foi dessa maneira que o pozinho chegou às mãos de IvoAlves Ferreira, irmão de Devair. De suas mãos, a pequenaparcela de pó repousou no bolso de sua calça e, assim, foilevada para casa.— É hoje que a Odete vai ficar bonita – disse Ivo, brin-cando com o material e o passando no pescoço e ombro deLuísa Odete, sua cunhada. Estava feliz, não sabia o perigoque carregava consigo.Na casa de Ivo, o material foi posto na mesa. Estava pre-parada a ceia mortal: Leide, a filha, brincou com poeira docésio-137, e depois comeu um ovo com as mãos sujas, en-golindo fragmentos radioativos. Era o pai entregando umpedaço do céu reluzente, um mimo para alegrar a família.Era Leide, toda feliz, carregando sua tia ao quarto e mos-trando seu novo brinquedo, seu tapete de estrelinhas. Océsio-137, naquele momento, mimetizava a morte em suaforma azulada. Com seu esplendor, espalhava seu mal pormeio de sorrisos, brincadeira, festividades: sua beleza eraencantadora demais para parecer mortífera.Enquanto isso, o material radioativo fazia sua peregri-nação.No dia 25,Devair vendeu o chumbo retirado da fonteradioativa para Joaquim, também dono de um ferro-velho,
  25. 25. 32Sociedade do Lixona rua P 19, lote 4. Sem que o marido soubesse, Maria Ga-briela, já desconfiada, colocou em meio aos pedaços dochumbo a cápsula que guardava o pó.As suspeitas dela au-mentaram à medida que mais pessoas ficavam doentes.Todas as vítimas que tiveram contato com o materialpassaram mal.Náuseas,tonturas,vômitos e diarréias torna-ram-se algo comum na localidade. Afinal, de onde vinhamaquelas sensações de mal-estar? As drogarias eram procu-radas como auxílio. Outros procuraram postos de saúde e,assim, foram encaminhados para hospitais. Mas mesmonos hospitais, nada podia ser feito. Os profissionais de saú-de, observando os sintomas, pensaram tratar-se de algumtipo de doença contagiosa, medicando os doentes em con-formidade com os sintomas descritos. Marília Gabriela cis-mou que esses problemas que afetavam as pessoas tinhamrelação com aquele troço que brilhava no escuro.— É esse trem que está fazendo mal pra nós.No dia 28 ela foi até o ferro-velho e pegou uma amostrado material. Junto com um empregado de seu marido, par-tiu para a Vigilância Sanitária. No percurso, feito por meiode ônibus, os passageiros foram contaminados. Ao chegarao local, a mulher colocou o saco com o material em cimada mesa e disse a um funcionário:— É isso que tá matando as pessoas.O funcionário, que era veterinário, levou o conteúdopara o pátio. Enquanto isso, médicos do Hospital de Do-enças Tropicais - onde muitos doentes estavam internados- começaram a suspeitar que as lesões poderiam ter sidooriginadas por contaminação radioativa.O físico Walther Mendes, alertado, foi investigar o caso.Munido com um monitor usado em medições geológicas
  26. 26. 33Campo estelar no chão terrestrede resposta rápida a estímulos, se dirigiu ao prédio da Vi-gilância. No caminho, ao ligar seu aparelho, viu que em se-gundos era acusado um elevado grau de contaminação ra-dioativa.Achou tudo aquilo muito estranho e providenciououtro medidor, pensando que o primeiro aparelho estives-se estragado. Dito e feito. Ele se certificou do fato.Chegando à Vigilância, conseguiu impedir que bombei-ros, chamados pelo veterinário, jogassem o material no rioMeia Ponte,ou seja,evitou que a cidade toda fosse contami-nada. Disse que era preciso conhecer o problema primeiro,antes de tomar qualquer iniciativa. Salvou a cidade de algopior. Imediatamente, a Secretaria de Saúde do Estado foiavisada e, no dia 29 de setembro (16 dias após o equipa-mento/material radioativo ter sido encontrado na clínica deradioterapia abandonada),a Comissão Nacional de EnergiaNuclear (CNEM) entrava em cena. A Rua 57 foi interditada.Começaram as movimentações para isolar a área e separaras pessoas contaminadas.No quartel,com seu uniforme azul-petróleo,seu revólvercalibre 38 e cassetete de madeira, Santos entrou em ação.Respondendo chamadas às sete e meia da manhã,o pelotãodo qual fazia parte foi escalado, junto com grande parte doefetivo de Goiânia, para isolar as localidades acidentadaspor um “acidente de gás”.Até então, tudo passava despercebido para o grandepúblico. Até mesmo a imprensa, sempre tão atenta, cobria,naqueles dias, o primeiro Grande Prêmio Brasil de Mo-tovelocidade 500 cilindradas, em Goiânia - GO, uma pro-va válida para o campeonato mundial. Cerca de trinta milpessoas se aglomeravam no evento. O ronco dos motoresVRUMMMMMMM, VRUMMMMMMM demonstrava que
  27. 27. 34Sociedade do Lixoas motos rasgavam o asfalto e o grito da platéia EHHH-HHHHHHHHHH se mesclava com toda aquela velocidade.O australiano Wayne Michael Gardner, de 28 anos, seguiatranqüilo, tranqüilo no retão, mas o ar, quente e seco, fezcom que um rodamoinho incrível levantasse muitas folhasde jornal. Remoinho de informação? Sem problemas! O in-cidente foi contornado e Wayne Michael Gardner mante-ve a liderança. Naquele ano o jovem já havia subido dezvezes ao pódio, vencido seis grandes prêmios e pontuadoem todas as etapas. Ele liderava e ia faturar o título. Foi omais regular de todo o campeonato. Ele merecia!!! E lá iaGardner com seu uniforme azul e branco, cruzando a li-nha de chegada, com sua moto número dois, que estava emprimeiro: melhor volta da prova: um minuto, 28 segundose 79 centésimos. Velocidade média de 155,49 quilômetrospor hora! Wayner Gardner conquistava sua 7ª vitória.Atrásdele, Eddie Lawson e, logo em seguida, Randy Mamola.Tudo era festa!Do lado de fora do evento, os acontecimentos seguiamseu percurso. O césio-137, com seu brilho encantador, ia fa-zendo cada vez mais vítimas. O soldado Santos partia parao ofício.Era soldado e oferecia a vida pela Pátria,que tantasvezes abandona essas vidas. Normal? Não deveria ser...O soldado, devidamente fardado, chegou com seu pe-lotão. Outras equipes escaladas anteriormente já haviamsocorrido, de certa forma, os civis. Santos deparou-se compessoas desesperadas no Centro de Triagem do EstádioOlímpico de Goiânia, local que abrigava provisoriamenteas vítimas do acidente com o césio-137 e onde era feito omonitoramento do grau de radiação pela Comissão Nacio-nal de Energia Nuclear (CNEN).
  28. 28. 35Campo estelar no chão terrestreLá havia astronautas, com macacões impermeáveis,luvas, botas descartáveis, máscaras com filtros. Tinhamdetectores de radioatividade, equipamentos de proteçãoindividual (EPI), máquinas e equipamentos necessários àmissão! Tudo isso para, o que se dizia, um acidente de gás.Por que os militares e servidores públicos, que ajudavam aisolar as localidades contaminadas e evitar o trânsito a pée motorizado das pessoas desavisadas,não podiam ter essaroupa especial? O soldado se questionou.Porém,questionarde nada adiantava àquela altura. Ele percebeu que corriaperigo, mas como estava no mesmo barco que seus amigosde profissão, e com o dever solene de ter jurado defender aPátria, a sociedade – mesmo com o risco da própria vida –pôs-se a cumprir o dever com cabeça erguida.Antes de se deparar com “astronautas”, ou melhor, mui-to antes disso, Santos tinha prestado cinco anos, sete mesese sete dias de serviços ao (extinto) 42º Batalhão de Infan-taria Motorizada. Submeteu-se a uma bateria de examesde saúde para ingressar nas fileiras do Exército Brasileiro.Detalhe: foi julgado “apto”, sem problemas de saúde. Seudesempenho físico era tamanho que, na época, participoude marchas de dois até 42 quilômetros. Na semana da in-fantaria, percorreu 14 quilômetros na Corrida do Infante.Bota fôlego nisso! Licenciou-se do Exército em 10 de se-tembro de 1986 e, no dia 1 de dezembro do mesmo ano,ingressou na Polícia Militar de Goiás, após aprovação noconcurso e exame de saúde. Matriculou-se na 13ª turma docurso de formação de soldados, no Quartel do Regimentode Polícia Montada (RPMON). Aguardava sua movimenta-ção e era empregado no serviço administrativo na (extinta)seção de ensino do quartel da Polícia Montada. Em 1987,
  29. 29. 36Sociedade do Lixoteve contatos imediatos de primeiro grau com os astronau-tas terrestres. Goiânia parecia tornar-se um campo estelar.Antes eram as estrelinhas azuis,agora eram os astronautas.O que mais faltava???No estádio olímpico, óbvio!, a competição parecia sermais a de quem estava menos contaminado,pois esses eramlogo liberados. Em três meses de trabalho da CNEN, de 30de setembro a 21 de dezembro, foram monitoradas 112.800pessoas, das quais 249 apresentaram significativa contami-nação interna e/ou externa; 120 delas contaminadas ape-nas em roupas e calçados. Essas pessoas, após passarempor um processo de descontaminação, foram liberadas. Asoutras 129 passaram a receber acompanhamento médicoregular. Destas, 79 contaminadas externamente receberamtratamento ambulatorial. Das outras 50 radioacidentadas ecom contaminação interna, 30 foram assistidas em alber-gues, em semi-isolamento, e 20 foram encaminhados aoHospital Geral de Goiânia.Desse grupo de 20 pessoas, 14 estavam em estado decontaminação interna grave e foram transferidas para oHospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro.A rotina de descontaminação era dura, sofrida, doloro-sa. Os contaminados passavam por inúmeros banhos comágua, sabão e vinagre para eliminar resíduos presentes napele. As áreas mais afetadas recebiam uma pasta com di-óxido de titânio e, depois, mais e mais banhos com sabão,permanganato de potássio ou hipocloreto de sódio a 0,5%.Tudo para eliminar o pó-azul-encantador-e-infelizmente-mortal.Para a recuperação das radiolesões, eram utilizadas so-
  30. 30. 37Campo estelar no chão terrestreluções analgésicas e antissépticas. Houve casos em que obisturi teve que entrar em ação e extirpar cirurgicamentetecidos necrosados. Os tratamentos seguiam. Para retiraro césio-137 do corpo, os contaminados abriam a boca e en-goliam doses de três a dez gramas de ferrocianeto férrico,mais conhecido como “Azul da Prússia” – ou seja, a mesmacor azul que matava, agora salvava vidas. Naquela ocasiãoo hospital também se transformava numa academia de gi-nástica, mas numa academia onde não se buscava a estéti-ca: o objetivo era fazer com que as vítimas transpirassem àforça, para eliminar os resíduos radioativos pelo suor. Aoinvés de complementos vitamínicos, entravam em cena osdiuréticos,também com a mesma função de eliminar os re-síduos mortais. Quem diria que um pozinho que cabia napalma da mão poderia causar tanta dor e sofrimento?Porém, os tratamentos médicos foram em vão. No dia 23de outubro falecia a primeira vítima do acidente: Maria Ga-briela, esposa do dono do ferro-velho. Após algumas horasfoi a vez de Leide. Os corpos, colocados dentro de caixõesde chumbo, chegaram a Goiânia no dia 26, para serem en-terrados no Cemitério Parque.No enterro, o soldado Santos dava cobertura policial. Apopulação não queria que os corpos fossem enterrados láe, para tanto, se armavam com cruzes de madeira, tijolos,pedaços de concreto, pedras, e tudo mais que pudesse serarremessado contra os caixões, como forma de protesto.A caminhonete blindada que transportava os caixõeschegou a ser atacada.A multidão, beirando duas mil pesso-as, parecia uma onda furiosa, que vinha rebentar em gritosde protesto. Eram pessoas, que por falta de informação, ti-
  31. 31. 38Sociedade do Lixonham medo e se uniam para evitar que o cemitério se tor-nasse um depósito de lixos radioativos.Triste e dopada por calmantes, a mãe de Leide, Lourdesdas Neves Ferreira, compareceu ao enterro sem o marido,Ivo, que estava internado no Rio de Janeiro. Com o apoioda primeira-dama do Estado na época, Sônia Santillo, con-seguiu se aproximar do caixão da filha, sem ser agredida.A dor que sentia jamais seria apaziguada. Não deram a elao direito de velar sua parente, nem chorar pela filha. Ela sópôde observar o rosto de Leide pelo vidrinho do caixão.O trabalho de descontaminação prosseguia mobilizandocentenas de pessoas. Goiânia parecia um campo de guerra,digno de filme de ação. Com o uso de jatos fortes de água,telhados, máquinas e ferramentas de trabalho eram lava-das, purificadas pelo líquido vivificador. Entulhos de casasdemolidas, calçadas, árvores cortadas, asfalto retirado deruas contaminadas, animais domésticos sacrificados, suca-tas dos ferros-velhos, todo material que não tinha condi-ções de reaproveitamento, sendo considerado lixo radioa-tivo,era embalado,transportado e condensado no depósitoprovisório de Abadia de Goiás, a vinte quilômetros de Goi-ânia.O soldado Santos, durante mais ou menos quatro me-ses, fazia sua via-crúcis de serviço. Ia do quartel ao Cen-tro de Triagem no Estádio Olímpico com carros de choque,micro-ônibus, viaturas ou motos. Fazia turnos de 24 horas.Durante o dia, o sol iluminava o trabalho desse soldado.À noite, a escuridão não lhe dava motivo para adormecer.Abrandado pelas luzes artificiais, o breu muitas vezes erasinônimo de trabalho.
  32. 32. 39Campo estelar no chão terrestreEm Abadia de Goiás nasciam dois depósitos de superfí-cie em concreto, fruto de projetos de engenharia específi-cos para armazenagem de rejeitos radioativos, asseguran-do a blindagem radiológica e a contenção do material, semrisco de escape para o meio ambiente. Foram mobilizados244 profissionais da CNEN, 125 da Marinha, Exército, Fur-nas, Nuclebras e Nuclei, e 300 pessoas do governo de Goiás,empresas contratadas,universidade,Defesa Civil do Estadodo Rio de Janeiro e voluntários locais. Tudo isso totalizou,de acordo com dados da CNEN, 669 pessoas.Com um custo estimado em 10 milhões de reais, todoesse processo originou seis mil toneladas de rejeitos radio-ativos, constituídos por 1.357 caixas metálicas, oito cilin-dros de concreto, 26 contêineres (com 14 tambores de 200litros).Abadia de Goiás recebia em suas terras uma monta-nha radioativa, que por 300 anos guardaria em seu interior,lacrado, o dano originado por 19 gramas de césio-137: des-truição, caos, medo, infelicidade, preconceito e morte.O tempo passou.Para prestar assistência médica e socialàs vítimas direta e indiretamente atingidas e desenvolveratividades relacionadas ao acidente, foi criado em dezem-bro de 1987, pelo Governo do Estado de Goiás, a FundaçãoLeide das Neves Ferreira (FUNLEIDE). Em 1999 houve umamudança e a FUNLEIDE foi extinta. Em seu lugar surgiua Superintendência Leide das Neves Ferreira (SULEIDE).Esse órgão separou as vítimas por grupos.O grupo I possui51 pessoas que foram expostas diretamente, com contami-nação interna e radiolesões e 35 descendentes. Já o grupoII,formado por vítimas com contaminação menor e sem le-sões,contabiliza 44 pessoas e 28 filhos e netos.E o grupo III,por sua vez,formado por trabalhadores do acidente,paren-
  33. 33. 40Sociedade do Lixotes, vizinhos sem exposição ou contaminação detectável, éo mais numeroso e conta com 548 pessoas,sem contabilizaros parentes. E, nessa história toda, os grupos I e II tinhamdireito de assistência até a terceira geração. Já o grupo III,onde Santos está inserido, ainda luta por seus direitos.O soldado, que havia trabalhado noite e dia para ajudaras pessoas, agora era abandonado. Como não havia recebi-do roupagem apropriada para atuar na área, teve contatocom o material.Durante anos,Santos juntou calhamaços dereceitas médicas,atestados,laudos e papéis que demonstra-vam estado de saúde debilitado, mas de nada adiantaram.Ele, que sonhava ser oficial da Polícia Militar e bacharelem Direito, precisou abortar seus planos devido a proble-mas de saúde e financeiros. Era saudável, tinha uma vidaem família,passeava,estudava,trabalhava,praticava espor-tes sem nenhum problema. Após sua atuação na desconta-minação, parecia que seu mundo, tão normal, ruía. Antes,participava de maratonas de corrida; agora, de maratonashospitalares. Ao invés de medalhas, passou a colecionarproblemas de saúde: diabetes, hipertensão arterial severa,dislipidemia, insônia, estresse, depressão, lesões na pele.Para ajudar, teve dois casamentos desfeitos:— Foi o preconceito – diz.A contaminação também foi responsável por causartranstornos financeiros.— Devido ao divórcio e a separação judicial, foi arbi-trada partilha de bens e pagamento de 30% de meus ven-cimentos líquidos de pensão alimentícia. Também tenhoencargos previdenciários,empréstimos e refinanciamentosbancários. No final de meu pagamento, que é cerca de trêsmil reais, me sobram apenas 500, que são para mim e mi-
  34. 34. 41Campo estelar no chão terrestrenha filha Kamila, que mora comigo. Esse valor mal cobredespesas mensais com meu tratamento de saúde.Além de ter dificuldades financeiras e de saúde, o sol-dado tem que arcar com os tratamentos de seus filhos. Eleexplica que sua filha Kamila nasceu com seqüelas físicas,herdadas por legado genético. No rol de problemas desta-cam-se alergias crônicas, hérnia inguinal à direita e gripescom tosses alérgicas. Seus outros dois filhos – de outro ca-samento e que moram com a mãe,em Minas Gerais – vivemdebilitados pela gripe.Em 2004, percebendo que sozinho não chegaria a lugarnenhum,uniu-se a outros militares,vítimas da mesma con-taminação. Quem poderia supor que seus amigos Juvenal,Cleyton, Claudio, Ciro, Valdecir, Manoel, Robson, Diurivê,Pedro, Suelimar, Sandro, Fabian, Ciro, Ricardo, Jose, Geci-mar, Eliaquim, Antonio, Jesuel, Zoroastro e Elvio, soldadosanônimos, teriam que lutar pelo direito de serem reconhe-cidos oficialmente como vítimas da tragédia? Mas tinhamde lutar, e para isso, fundaram a Associação dos MilitaresVítimas de Césio-137 (AMVC-137), cuja assembléia geralordinária realizou-se na sede da Associação dos Subtenen-tes e Sargentos da Polícia Militar de Goiás, em Goiânia, em2004.As reuniões nem sempre eram freqüentes,tendo em vis-ta que o grupo se mantinha organizado e os integrantes in-teragiam entre si. Mas quando o assunto trazia aquele bri-lho, aquela embalagem que o configurava como especial eimportante, surgia o edital de convocação. Nos blá-blá-blásdas reuniões eram discutidos os assuntos relevantes da en-tidade, elaboravam-se pautas sobre o que ia ser debatido etambém as atas. Era preto no branco!
  35. 35. 42Sociedade do Lixo— Recebemos o apoio de organizações não-governa-mentais, como o Greenpeace, ABCcâncer, Associação dasVítimas do Césio-137, entre outras, lembra o soldado.Como a AMVC-137 não possui sede própria, geralmenteutiliza as sedes das entidades de classe da Polícia Militar. Eo soldado Santos, primeiro-secretário da associação, pre-cisa se mobilizar para ajudar nas reuniões. Para otimizarseu tempo, em casa mesmo, se aconchega na cadeira, liga ocomputador e, enfim, está na net. Soube aproveitar as faci-lidades do mundo da informática e, assim, criou um blog,que mantém atualizado com notícias sobre a associação, oacidente e suas conseqüências.Recebe e-mails e os responde com a devida rapidez. Sãojornalistas,estudantes universitários,de todos os cantos doBrasil, até mesmo de Coimbra, em Portugal, que queremsaber sobre a história de luta desses militares.As perguntasmeio que se repetem, mas ele não se cansa de responder.Em abril de 2008, Santos entrou com três meses de li-cença especial e um mês de férias. Antes de vencer a licen-ça, buscou sua aposentadoria por tempo de serviço. Com asaúde debilitada (e mais de 30 anos de trabalhos prestadosà Polícia Militar de Goiás), aguardava a publicação da tãosonhada aposentadoria em Diário Oficial, que finalmentesaiu no dia 9 de setembro de 2008. Mas isso não significouque ele pudesse colocar seu chinelo e descansar.Nesses anos,o policial deve ter se cansado de contar car-neirinhos. Vítima de insônia, o anoitecer, para ele, não ésinônimo de sono. A noite não o embala, nem o ajuda a ni-nar. Pega os remédios, abre a boca e os engole com um golede água. É remédio para PRESSÃO ALTA e para controle de
  36. 36. 43Campo estelar no chão terrestreansiedade. A fada dos sonhos, se é que existe, aparece sótarde da noite ou,às vezes,quando está meio afobada,pelastrês da madrugada. Bate a varinha na cabeça de Santos eele finalmente adormece – o remédio de ansiedade é o pómágico que o faz apagar. O que se passa em seus sonhos?São nove horas da manhã. Com o regime militar que se-gue, acorda, faz o café para a filha Kamila, de onze anos.Mais uma vez toma remédio contra PRESSÃO ALTA e paracombater a diabetes, enfermidade muda que deixa seu san-gue doce. Tantos problemas de saúde, mas a maratona nãotermina. Faz almoço para a filha e para ele. Às vezes, quan-do não está tão disposto a cozinhar, varia o cardápio numrestaurante. De novo toma o remédio para controle de dia-betes.Satisfeita,devidamente alimentada,Kamila pega o trans-porte escolar, que segue até o Colégio da Polícia Militar,Unidade Hugo de Carvalho Ramos. Sai de casa às quinzepara o meio dia, retorna às seis e meia da tarde.No período sem a filha, o soldado segue a rotina:— Assisto televisão,leio jornais,visito meus amigos nosquartéis da capital. Vou ao centro da cidade pagar contasou fazer compras.Nessas tardes a solidão, variadas vezes, se transmutanum sentimento de vazio:— Quando estou deprimido e muito ansioso, fico emcasa sem sair ou vou ao médico para acompanhamento.O soldado Santos, que há 21 anos se preparava para tra-balhar “num vazamento de gás” em Goiânia, com seu uni-forme azul-petróleo,cinto preto,coturnos negros e luzidios,agora, com 46 anos, se transforma num soldado aposenta-
  37. 37. 44Sociedade do Lixodo. Veste uma camiseta invisível chamada luta, tecida coma esperança de ser reconhecido oficialmente como vítimado acidente com césio-137, um acontecimento que marcoue ainda deixa marcas em todos os que tiveram, de algumaforma, algum tipo de contato com a tal estrelinha azul.
  38. 38. Alimentos recolhidos no final da feiraLucasClaro
  39. 39. 47Lucas ClaroLimeirenses driblam a fomecom inteligência, boa vontade esolidariedade dos feirantesXepa nossa de cada diaFome eu nunca passei. Já tive dificuldade porqueantes, como morava em sítio, não tinha acesso amuitos benefícios da cidade. Essa é a afirmaçãode Domingas Tiago Martins, 55 anos. Com tênis simples,avental cinza e calça preta, ela arruma com entusiasmo osalimentos doados por colaboradores ao lar espírita ErnestoKülh, em Limeira, popular Lar do Moço. A cozinheira tra-—
  40. 40. 48Sociedade do Lixobalha há 14 anos no local e já está habituada a mexer comos alimentos.Alguns deles como frutas,verduras e legumessão doados por feirantes para incrementar a popular xepa,a sobra das feiras.Tarde de domingo de intenso calor, dona Domingas se-para as cestas básicas que serão destinadas aos 15 funcio-nários da instituição.Arroz,macarrão,óleo,feijão e leite sãoos principais ingredientes. Quem trabalha na entidade temdireito a uma cesta básica. Finalizado o serviço de monta-gem das cestas é hora de aguardar a chegada da xepa.Enquanto isso na feira três garotos assistidos pela en-tidade recolhem as mercadorias doadas. À frente da arre-cadação, passando as diretrizes aos adolescentes, todos daperiferia de Limeira, em maioria negros, está Hélio Mian,mais de oito décadas de existência, 87 anos. Todos os do-mingos, exceto quando tem compromisso pessoal ou pro-blema de saúde, esse senhor de cabelo grisalho presta soli-dariedade. Motivo: satisfação em ajudar o próximo.— É muito bom poder ajudar as pessoas. Faço isso hámuito tempo e para mim é um prazer enorme,conta CarlosMian.Várias senhoras, muito bem vestidas, abrem suas som-brinhas para proteger-se não de chuva, mas dos raios in-tensos do sol que proporcionam um calor desgastante. Ovendedor de raspadinha, mistura de gelo raspado com gro-selha ou outros sabores agradece.Aumento da temperaturaé sinal de mais dinheiro no bolso.Os garotos do Lar do Moço não perdem tempo. No tra-balho deles agilidade e força são pré-requisitos. Um ado-
  41. 41. 49Xepa nossa de cada dialescente moreno, camiseta vermelha e shorts, vem subindo,caminhando em direção a perua que carrega os alimentos,ainda vazia. É Diego Firmino Chaves, 15 anos, dois deles vi-vidos dentro do Lar do Moço.Seu prato predileto é lingüiçacom arroz e bastante feijão. No caixote que puxa traz frutase verduras.Aproxima-se das 11 horas da manhã.A feira acontece naavenida Comendador Agustinho Prada e é a maior do finalde semana. Centenas de pessoas, crianças e idosos confra-ternizam-se num ambiente agradável e familiar. Prosas so-bre política, conversas esporádicas a respeito da economiae, principalmente, do esporte rolam entre quem anda pelolocal. O esporte é o bate-papo especial, porque ao lado dafeira está o estádio Pradão,do Independente Futebol Clube,time que disputa a série B do futebol paulista. E no domin-go jogadores do campeonato amador da cidade mostramas habilidades e lambanças no campo.Na feira, os locais mais populosos são as barracas depastéis e a de frutas e verduras.A peixaria também é dispu-tada: jovens e idosos buscam as promoções. Roseli Feola éfeirante há oito anos. A barraca dela é uma das primeiras,fica logo no início da feira, próximo ao portão principal doestádio do Pradão.A senhora de camiseta branca e calça je-ans relata que doa em média cerca de 20 quilos de alimen-tos para o Lar do Moço,todos os finais de semana.Segundoela, uma colaboração muita válida.— É importante. Eles precisam e pra mim não faz falta.Vou separando algumas verduras aos poucos nessa caixa equando vejo, ela já está cheia.A caixa fica ao lado da barraca e os produtos separa-
  42. 42. 50Sociedade do Lixodos por ela são aqueles que possivelmente irão estragarnos próximos dias. Eles ficam ali até serem levados pelosgarotos do Lar do Moço que ainda não passaram pelo lo-cal. Entre um atendimento e outro, a verdureira conta queé constante a procura de pessoas por sobras de alimentos.Relata que a busca acontece principalmente perto do meiodia, horário de término da feira. Especulada sobre algunsfatos que lhe despertaram a atenção, Roseli lembra-se deum sábado muito frio. No final da feira, o caminhão da pei-xaria recolheu os peixes das duas barracas.Os restos ficaramjogados ao chão. Uma mulher com uma criança pequena,aparentemente de oito anos de idade aproximou-se dos res-tos de comida.E a pequena menina,com pouquíssima roupa,segurou na mão a cabeça do peixe cru e começou a devorá-lo.A mãe nada fez. Dona Roseli pegou, então, algumas frutas eentregou à mulher e à menina que as engoliu rapidamente.A feirante passa a mão no rosto e dispara:— Infelizmente jamais vou mudar o mundo. Ajudo noque posso; enquanto isso, milhares de crianças passam pelamesma situação em outros lugares.O sol parece agir com maior intensidade. Numa das bar-racas que há diferentes produtos, como roupas, bolas de fu-tebol e basquete e camisas de clubes futebolísticos, existemtambém relógios de pulso e de parede.Eles mostram que já équase meio dia.A movimentação na feira é bem menor.Mes-mo assim,o cheiro de fritura mistura-se ao de frutas cítricaslaranja e tangerina, por exemplo. O barulho das conversasnão é mais tão audível. Agora o som que ecoa é dos cami-nhões da peixaria. Em marcha ré, um deles vem lentamen-
  43. 43. 51Xepa nossa de cada diate buscar os peixes que não foram vendidos. Eles vão voltarpara câmara fria. Diego Oliveira e Robson Rocha, seu colegado Lar do Moço,continuam recolhendo as doações e chegamà barraca de dona Roseli:— Tem alguma coisa pro Lar do Moço hoje, dona? per-gunta Robson, de 17 anos, estudante do ensino médio.A feirante Roseli acena com o braço o local onde está ocaixote cheio de produtos, que iriam para o lixo caso nãofossem doados. Os dois meninos carregam e colocam a doa-ção em um carrinho de ferro, com uma pequena corda parapuxá-lo. Percorrem as últimas barracas ainda não visitadasou que não tinham doações na primeira passada.Com fome,Diego prova uma banana bem madura. Quando chegam àperua entra em cena uma prática circense: os meninos e omotorista realizam um verdadeiro malabarismo para quetudo caiba no veículo sem estragar as doações.Com cuidado,empilham as caixas de alimentos. Após o serviço é hora departir, porque as funcionárias já estão esperando no Lar doMoço. Mas antes, os garotos param para saborear os pastéis,também doados.Agora, sim, é hora de voltar ao Lar do Moço. O cheiro naperua é forte. Em alguns momentos, quando o vento pas-sa pelas janelas entreabertas, o odor é de alguns produtos,frutas e verduras que estão estragados. No trajeto rumo àentidade, o motorista voluntário Arlindo Leite brinca comos meninos.— É, meninada, hoje a perua está pesada.Os garotos não dão muita trela, afinal, estão com a bocacheia de pastel de carne ou de frango. E precisam manter aeducação.
  44. 44. 52Sociedade do LixoO motorista Arlindo de Oliveira, senhor de 57 anos, tra-balha semanalmente com entregas e, aos finais de semana,dirige a perua com amor para a instituição. Ele é novo nafunção, há apenas dois meses. Mesmo assim, não esconde asatisfação em prestar a solidariedade ao Lar do Moço. Diri-gindo e comendo pastel, comenta:— Não tem muito tempo que eu faço esse serviço.É mui-to bom. São poucas horas e eu me sinto muito bem em po-der ajudarEspremido ao lado de Diego e do motorista, pergunto seo veículo sempre fica lotado. Segundo eles, na maioria dasvezes fica.A solidariedade dos feirantes limeirenses é muitogrande.A perua segue seu trajeto.Ela é de propriedade da entida-de. Não é um veículo novo. Pelo contrário, está bem desgas-tada.A porta traseira por onde entram os alimentos às vezesfica enguiçada. Quando passa por lombadas, o barulho deferro aumenta; mesmo assim ela é de enorme utilidade.Depois de cerca de cinco minutos no tranqüilo trânsitode Limeira (estamos em um domingo) chegamos ao Lar doMoço. Um portão azul se abre e a perua adentra para des-carregar os alimentos. Três ajudantes estão à espera no lo-cal: a cozinheira Domingas, aquela que arrumava as cestasbásicas, a auxiliar geral Cícera Guedes e a também ajudanteSheila Pierrotti. Imediatamente elas, os meninos e o moto-rista descarregam toda a mercadoria. A geladeira vazia aospoucos fica totalmente preenchida. Algumas caixas perma-necem do lado de fora. Nelas há tomates, legumes, verdurase frutas.Todo esse material auxilia também os próprios fun-cionários, que podem desfrutar do benefício de levarem umpouco para casa.
  45. 45. 53Xepa nossa de cada dia— Nossa. Ajuda muito. Ao invés de comprar, eu e todosos outros ganhamos produtos como esse tomate, que, comovocê pode ver, está em perfeitas condições – afirma a cozi-nheira Domingas.O fruto vermelho é separado assim que chega. É lavadoe colocado no fogo para virar o especial molho de tomate, omesmo que dá aquele realce ao sabor da macarronada e dasalsicha. Em poucos minutos, quilos de tomates estão fer-vendo e permanecem assim por um longo tempo.Cerca de 70% dos alimentos arrecadados na xepa sãoreaproveitados, mas, de acordo com Fernando AparecidoCardoso, presidente da entidade, a comida servida para osgarotos é de alta qualidade nutricional.— A comida que os nossos meninos tem aqui é a mes-ma que nós comemos. Quando temos eventos na casa, osdiretores e os voluntários almoçam ou jantam da mesmacomida que é dada aos meninos. Dessa mercadoria que épega na feira, dada pelos feirantes, nós fazemos a seleção.Aquilo que não presta a gente joga fora e aquilo que é apro-veitável a gente reaproveita - ressaltaO lar espírita existe há 37 anos e já atendeu 275 criançase adolescentes menores de idade. Na sala do presidente háum quadro com o rosto de Cristo e sobre a mesa o livroO Evangelho Segundo o Espiritismo, de Alan Kardec. Ummarcador de páginas indica que um terço do livro já foilido. O presidente, de camisa de manga curta verde-clara,calvo e de olhos verdes,explica que o Lar se mantém de do-ações e de eventos realizados pelo menos uma vez por mês.Seu Fernando recorda como o trabalho de arrecadação daxepa começou:
  46. 46. 54Sociedade do Lixo— Faz mais de 20 anos. Quando um voluntário nosso,que foi diretor da casa, um advogado chamado Antonio Al-ves Montezuma,ia todo domingo à feira,notou que no finalos feirantes jogavam muita coisa fora e que muitos alimen-tos poderiam ser aproveitados.Seu Fernando conta que o advogado arrumou uma caixade plástico e começou a trazer sobras da feira para a entida-de. Certo dia, quando se deram conta, ele já estava fazendotrês, quatro, cinco viagens, às vezes, no mesmo domingo.— Então, em agradecimento a ele, montamos um es-quema e, de lá para cá, tem dado muito certo – conclui opresidente.As funcionárias que trabalham no Lar sentem-se satis-feitas. A mais antiga delas, Domingas, diz que trabalhar láé um prazer.— Eu acho bom o serviço que faço, tanto que nos finaisde semana sinto falta, porque aqui sempre estou fazendoalguma coisa, conversando com algum menino – frisa a co-zinheira.Domingas explica como é o realizado o trabalho na co-zinha com a xepa:— Eu separo o que está bom. Lavo muito bem. Depoiscozinho e sirvo como refogado e outras coisas.Agora a par-te ruim, que está podre, é dada para lavagem.Com simplicidade no agir e nas palavras, a cozinheirarelata que a massa de tomate é preparada com um carinhoespecial. De acordo com essa mulher, que começou a tra-balhar como auxiliar geral, o extrato de tomate preparadoaqui não faz mal para a saúde.— Quando comecei a trabalhar aqui um antigo funcio-
  47. 47. 55Xepa nossa de cada dianário (do Lar) me falou que quando ele comia nossa ma-carronada com o molho não fazia mal. Mas se ele provassealgum alimento com molho de tomate no restaurante fica-va com uma coisa ruim no estômago. Segundo ele, porquetem um produto no molho para não estragar – explicoudona Domingas.Segundo a nutricionista Regina Alves, a cozinheira estácom razão:— Esse tomate vai ficar no calor que mata as bactérias.Não vai conter nenhum conservante, nem passar por qual-quer industrialização.Na mesa do consultório da nutricionista, uma pirâmidemostra três grupos básicos de alimentos: energéticos,regu-ladores e construtores. Para uma alimentação ser saudável,é necessário que tenha pelo menos um item de cada grupo.Por esse motivo, a variedade no cardápio é fundamental.— É mais nutritivo um prato com variedade de alimen-tos. Por exemplo, uma sopa só com macarrão, é menos nu-tritiva, do que outra com mais legumes e verduras – expli-ca. É da variedade do cardápio do Lar do Moço que o ado-lescente Jéferson, 15 anos, alimenta-se diariamente. De pelemorena e cabelo raspado, o sorridente e tagarela garoto tema fisionomia que lembra o jogador Robinho. Apesar da se-melhança, o jovem não tem no futebol seu esporte favorito.Motivo: Jéferson teve de fazer uma cirurgia no joelho,porquelevou um chute durante uma partida.Daí pra frente perdeu ointeresse pelo esporte mais popular do país. Está inabilitadopara jogar.
  48. 48. 56Sociedade do LixoMesmo assim Jeferson tem uma história peculiar. É vice-campeão brasileiro de hipismo. De acordo com ele, esse é ofato mais marcante de sua década e meia de vida:— Minha maior alegria é ter esse título, que ganhei noprimeiro ano que comecei a treinar. Mas agora isso é coisado passado.— Coisa do passado?— Perdi o interesse.Agora eu quero é jogar basquete! Brin-ca o garoto.Jeferson sonha em ser administrador de empresa, idola-tra o jogador de basquete norte-americano Kobe Brayan.Sediz feliz dentro do Lar do Moço, apesar do seu sofrimentocom a ausência dos pais. Pode ver a família só uma vez porsemana. O pai revende sucatas e tem mais três filhos:— Apesar de tudo, sou uma pessoa linda e maravilhosa– Jéferson encerra a conversa.Além do garoto, outros sete meninos são assistidos noLar do Moço. Eles moram na instituição. Estudam, fazemas refeições diárias, tem auxílio médico, odontológicoe, ainda, sobra uma parcela do dia para o lazer, que érealizado de diversas formas: futebol, basquete, vídeos-game, filmes ou jogos de tabuleiro. O Lar do Moço aten-de apenas meninos, que são orientados desde cedo pelosfuncionários sobre a importância do amor ao próximo e,também, que o ser humano não deve desperdiçar nada,pois muitas coisas são irreversíveis. Apesar de todo esse trabalho desenvolvido no Lardo Moço, infelizmente, no Brasil, de 30% a 40% dos ali-mentos produzidos vão parar no lixo. Em países desen-volvidos esse número não passa de 10%. Boa parte do
  49. 49. 57Xepa nossa de cada diadesperdício acontece logo na colheita e no transporte,mas os consumidores não ficam ausentes no mutirão dosalimentos perdidos.Uma informação gritante: o brasileiro joga fora maiscomida do que leva à mesa. Um estudo da EmbrapaAgroindústria de Alimentos mostra que só em hortaliças,o total de perdas é de 37 quilos por habitante, enquantoa ingestão desses vegetais não passa dos 35 quilos nomesmo período. No total, são monstruosos 12 bilhões dereais que o País despeja nas lixeiras, em apenas um ano.Mais impressionante é pensar que quase 33 milhões dereais em comida vai para o lixo em míseras 24 horas.Ao todo, são 39 milhões de toneladas de alimentos pordia, quantidade suficiente para alimentar - com café-da-manhã, almoço e jantar – 39 milhões de pessoas, quaseos cinqüenta milhões que ainda passam fome no país, deacordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE).Em contraste com essa realidade nacional, na qualreina o desperdício, em Limeira, o Lar do Moço rea-proveita 70% dos alimentos doados pelos feirantes. Osoutros 30%, que exalavam, por exemplo, naquele dia, ocheio forte dentro da perua, no trajeto até o Lar do Moço,estavam estragados, por este motivo terão um diferentedestino que não é o latão de lixo. Nesse momento en-tra em ação outra iniciativa de extrema valia. Esses 30%restantes viram comida. É simples: já que não podem irpara a mesa das crianças do Lar do Moço, servem para arefeição dos suínos, nos sítios de Limeira.Todas as segundas-feiras, dezenas de quilos de ali-
  50. 50. 58Sociedade do Lixomentos vão direto para a lavagem dos porcos. Fecha-seentão um ciclo do alimento e do lixo, porque, nos finaisdo ano, proprietários desses sítios doam leitoas para oLar do Moço. Recapitulemos: os feirantes praticam a boaação de doar a xepa para o Lar do Moço. O que não éaproveitado pelas cozinheiras tem seu destino: a lava-gem dos porcos. E alguns desses porcos alimentam ascrianças e jovens, e ajudam na arrecadação de fundospara essa entidade, nas festas e quermesses de final deano. O presidente do Lar do Moço, seu Fernando resumeo clico final dos 30% dos alimentos que alimentam osporcos:— Os sitiantes que nos doam a carne de porco apro-veitam os restos de comida que iriam para o lixo. E nósajudamos a engordar os porcos, que mais tarde servempara alimentar os meninos.O Lar do Moço é um exemplo de solidariedade econsciência. Mas infelizmente é uma entidade isolada,que existe em Limeira. É necessário que outros “Lares”como esse surjam em dezenas de cidades, para que, cominteligência e força de vontade, o que hoje é lixo paramuitos torne-se alimento para milhões de pessoas numfuturo próximo.
  51. 51. Edivaldo com seu irmão em lixão de Campinas/SPEdivaldodaSilvaAlves
  52. 52. 61Analúcia NevesNo passado, mãe e filhoforam catadores. No presente, asuperação e a melhoria de vidaVida no lixoOs filhos da sociedade contemporânea têm mundostotalmente opostos.Numa ponta estão seres huma-nos, vestidos para uma batalha nos aterros sani-tários e lixões. Correm em direção ao caminhão da coleta,quando ele chega para despejar sua carga. Mais parecembichos-homens. Travam ali uma luta feroz. Competem comgaviões e urubus circundando o céu. Alucinados, tiram oque podem do amontoado descarregado todos os dias.Bus-
  53. 53. 62Sociedade do Lixocam comida e lugar para viver e procriar. Mexem, agitam,recolhem e espalham as sobras. Atentos ao que procuram,não desviam o olhar.Na outra ponta, paralelo a essa situação, está aquelaencontrada, por exemplo, nas Bolsas de Valores de toda aaldeia global, preocupada somente com o crescimento eco-nômico. Para os engravatados das bolsas, a competição sedá entre homens que, em busca de lucro e poder, gritamnum desvaire exacerbado.Ao final do dia podem comemo-rar pelos lucros obtidos com uma taça de vinho francês ou,ao contrário, com um Lexotam para aliviar as tensões.Nos dias de hoje, apesar dos apelos para que os muni-cípios construam aterros sanitários, ainda existem lixõespara servir de palco de tais cenas corriqueiras. Na décadade 1960, um desses lixões clandestinos serviu de cenárioprincipal da história da ex-catadora Maria Ferreira Alvesda Silva. Nasceu no ano de 1950, mas, por ironia, foi regis-trada como se tivesse nascido em 1947, em Mandaguari, in-terior do Paraná. Parecia até um sinal de que a história damenina seria cheia de dificuldades.Maria teve seus momentos de corre-corre. Não numabolsa de valores, mas sim num lixão clandestino, que co-meçava quando terminava o quintal da sua casa construídade tábuas feitas restos de construções. Casou-se ainda naadolescência, aos doze anos de idade. Ela e o marido vie-ram para Campinas em busca de uma vida melhor. Comtreze anos foi mãe.O passado de Maria não lhe causa vergonha,ela fala comorgulho de tudo que passou para sobreviver.A ex-catadoralembra que toda manhã aparecia bem cedo com o filho,ainda bebê, nos braços em busca de materiais recicláveis ealimento para aquele dia. Como não tinha com quem dei-
  54. 54. 63Vida no lixoxar seu filho, o levava em seus braços, para apanhar tudoque pudesse ser útil.Esse problema persiste. As mães catadoras de materiaisrecicláveis ainda sofrem com a falta de creches ou escolasem tempo integral. Tendo que trabalhar muitas horas, nãovêem alternativas para cuidar dos filhos,a não ser levando-os para o trabalho.Como nos outros,a competição no lixão da Maria era fe-roz nos anos de 1960. Ela podia ser comparada a um bicho-homem.Competia com as gaivotas e urubus circundando océu; cachorros e gatos alucinados,tirando o que podem dosamontoados descarregados todos os dias nos lixões.A face rosada de Maria brilha e os lábios sorriem, con-trastando com as histórias que saem da sua boca, ao fa-lar da guerra com as ratazanas que se divertiam cavandoburacos, e se multiplicavam como células em evolução; daguerra com os mosquitos,pernilongos,que sugam o sanguesem piedade. Nessas condições adversas, viviam a mãe eseu bebê Edivaldo. Por um instante ela pára. Reflete e, fala:— Hoje é comum as pessoas se encontrarem com ca-tadores de recicláveis, eles não escolhem nem hora, nemlocal para trabalhar. Andam praticamente no mesmo rit-mo.Como se precisassem de ajuda para empurrar o que lhepesa. Param o carrinho em qualquer lugar, até na calçada,para remexer sacolas, papéis e caixas. Recolhem de tudo.Será que se a história de Maria fosse hoje, em 2008, algoseria diferente?Pesquisadores e ativistas em favor do meio ambiente de-fendem que tudo o que se descarta pode ser transformadoem matéria-prima. Maria não teve essa orientação que oscatadores têm no presente. Ela só sabia que os sucateiroscompravam vidros, papelão e latinhas. Que naquele tempo
  55. 55. 64Sociedade do Lixopouco era reciclado. Atualmente, os olhos cautelosos doscatadores enxergam bem mais do que se pensa.Inclusive oslixos mais valiosos, como alumínio, papel branco, papelãoe garrafa pet.Além disso, os catadores se organizam em cooperati-vas, que funcionam como depósitos, postos de triagem dacoleta feita nas ruas. Depois, eles repassam o lixo para asempresas de reciclagem, antes mesmo de serem vendidosàs indústrias. Em 2003, o Ministério do Trabalho, atravésda CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), classificouo catador como trabalhador, sob a nomenclatura “CatadorDe Materiais Recicláveis”.Estudos apontam que hoje existe cerca de 800 mil cata-dores em atividades no Brasil. Desse total, 7% estão estabe-lecidos nas cooperativas e associações de catadores. Inde-pendente se o município faz ou não a coleta seletiva.Por outro lado,infelizmente,são muito poucas as pessoasque separam seus lixos domésticos.A população ainda estáengatinhando no que diz respeito à reciclagem.Ainda que asua participação e conscientização são peças fundamentaispara o sucesso de qualquer programa que favoreça o meioambiente. No caso da coleta seletiva, sem a conscientizaçãodas pessoas, ela corre o risco de não sair do papel.Por sua vez, as empresas se anteciparam ao Poder Públi-co e têm procurado enquadrar-se em planos de responsabi-lidade social e preservação ambiental. Os governos muni-cipais apenas ensaiam algumas ações através da criação dediretorias ou secretarias de meio ambiente.Isso,depois quealgumas ongs passaram a cobrar dos governantes atuaçõesconcretas em favor da natureza. Quem não se lembra dasmanifestações dos ativistas do Greenpeace pelo mundo?No que diz respeito a coleta e reaproveitamento do lixo
  56. 56. 65Vida no lixono País, existem1,5 mil lixões espalhados por todo o seuterritório. Esses depósitos constituem a forma mais rudi-mentar no armazenamento dos detritos. Além do mais, es-ses lixões,clandestinos ou não,servem de habitat para sereshumanos que ainda moram em torno deles. Embora essaspessoas ocupem a posição de desafiantes políticos e sociaispara as prefeituras brasileiras, foi o máximo que consegui-ram até aqui.Uma vez que para o fechamento de um lixão épreciso avaliar o futuro dos catadores que aí vivem. Pois oseu fechamento interrompe um fluxo importante de receitaparas para a comunidade.Relatórios comprovaram que a resposta destes gruposao fechamento dos lixões pode ser violenta. Campinas re-gistra casos de caminhões de lixo depredados,ao tentar en-trar numa área de lixão transformada em aterro.As mudanças em prol do meio ambiente são pífias. Masjá é alguma coisa! E a Natureza? — Ah! Essa segue agoni-zante! Prova disso é a declaração da ONG canadense GlobalPrint Network, de outubro (2008), de que são consumidosmais recursos naturais do que o planeta pode repor.A prova disso no Brasil é que mais de 158 mil toneladasde lixo são coletadas por dia no país,sendo que apenas 46%desse total recebem destinação adequada.O filho de Maria. Edivaldo da Silva Alves, hoje com 43anos de idade,aparenta um homem magro,calvo,pele amo-renada. Os olhos castanhos escuros escondem o seu passa-do de catador. Tem restrições para falar de sua origem. Avoz embarga, como se algo atrapalhasse a dicção.Edivaldo, também é conhecido como Didi. Gosta dasfunções que exerce no presente: fotógrafo profissional,comprêmios nacionais e internacionais, agenciador de talentos
  57. 57. 66Sociedade do Lixoe está cursando o último ano de Publicidade e Propaganda.Está sempre bem vestido.Apesar das roupas elegantes, que de certa forma camu-flam o seu passado, a sua retórica domina o ressentimentode quem sabe que a vida poderia ser mais bem aproveitada,mesmo sem condições financeiras para realizar o que julgaquerer. Para ele o pai, sempre ausente, não tinha o direitode privá-los de tanto! Ao contrário de Maria, o filho primo-gênito, não gosta de lembrar-se dos tempos da catação.Ao contar as experiências no lixo,apesar da pouca idadeque tinha, ele apenas fixa o olhar para o infinito e demoraa responder. Começa meio sem jeito. Fala muito pouco dopassado, quase nada. No entanto, entre uma palavra e ou-tra, mostra que é ligado a tudo referente aos catadores. Sórevela que quando recolhia embalagens procurava as maisvaliosas. Quando achava algo de comer que lhe parecia sa-boroso,batia na roupa para tirar a sujeira e,imediatamentecolocava na boca. Devorava ali mesmo, sem titubear. Sentiao gosto e demorava a engolir.Didi fala bem pouco. Não vacila para afirmar:— Acredito que já fiz muito nessa minha vida. Fui ca-tador, sim! Mas catador de embalagens. Pegava o que eradinheiro certo. Não garimpava qualquer coisa. O ruim éque ficava exposto a tudo! A todo tipo de material.Tambémnunca gostei de ser confundido com mendigo.Didi argumenta que não é só porque vive do lixo que apessoa é lixo.A mesma opinião tem Margarida Rosa Junqueira. Elaé moradora e membro da Associação de bairro do JardimNova Europa, em Campinas, e conta que, não faz muitotempo, a associação em parceria com a Unicamp se pron-tificou para criar uma cooperativa de catadores, uma vez
  58. 58. 67Vida no lixoque a região conta com muitas empresas. Também dariao suporte necessário até que os membros começassem aandar com suas próprias pernas. Mas, para surpresa da as-sociação, quando o projeto foi colocado aos moradores, arejeição foi unânime. Para aquelas pessoas desinformadas,o bairro ficaria exposto à ação de “marginais e mendigos “.Eles trariam a desvalorização dos seus imóveis e roubos.Margarida lembra que nas reuniões para exibir o pla-no iam leões de chácara, homens fortes e desconhecidosdo bairro. Eles passaram a freqüentá-las vestidos de roupapreta. Ficavam no fundo da sala com os braços cruzados,fixando os expositores.— Por falta de apoio, esclarecimento da comunidade eboa vontade por parte do Poder Público Municipal, que selimitou a ceder o terreno para a cooperativa, o projeto foiengavetado. A elite desinformada venceu – disse Margari-da, com tristeza nos olhos e revolta nas palavras.Margarida acha que as pessoas não procuram se infor-mar direito sobre o assunto.Só se preocupam consigo mes-mas. Numa cidade como Campinas é comum ver os lixostotalmente misturados.A experiência dessa mulher com relação ao projeto dacooperativa confirmou o preconceito das pessoas. Aqueleigualzinho ao que Didi sentiu na sua adolescência de cata-dor. Mostrou também que o lixo é uma grande problemá-tica. Mas pode ser a grande solução. É um problema am-biental e social e, ao mesmo tempo, é uma alternativa degeração de empregos.Outra questão importante, que precisa ser observadopelo Poder Público, é a falta de equipamento adequadopara os catadores. Eles são fator causador de acidentes en-tre esses profissionais.
  59. 59. 68Sociedade do LixoO fotógrafo Didi sabe bem disso. Com expressão séria esacolejando o dedo da mão direita, dispara:— Também não nos precavíamos com luvas, sapatos fe-chados, camisas de manga e calças compridas. O que vestí-amos e calcávamos eram tirados do lixo. Eu era tão peque-no! E quer saber? Tinha até embalagem de agrotóxico. Simveneno mesmo!Pesquisa de 2008 do Instituto Nacional de Processamen-to de Embalagens Vazias (INPEV) mostra o Brasil no topodo ranking dos países que recolhem e reciclam as emba-lagens de agrotóxicos (substâncias químicas usadas nocombate a pragas e doenças de animais e vegetais). Esselevantamento indica que, do total comercializado em 2007,foram recolhidas 80% das embalagens primárias, aquelasque não entram em contato com o produto químico. Entrejaneiro e dezembro de 2007, foram enviadas para recicla-gem ou incineração mais de 20 mil toneladas dessas emba-lagens vazias.Com o aumento das exportações dos produtos agríco-las, o governo sancionou, em junho de 2000, a lei 9.974, quedetermina que os usuários desses produtos devem efetuara devolução dessas embalagens vazias em qualquer umadas 365 unidades de recebimentos espalhadas pelo terri-tório nacional. Além disso, as empresas produtoras e co-mercializadoras são responsáveis pela destinação dessasembalagens. Na sua maioria das vezes, são usadas comomatéria-prima para produzir sacos plásticos de descarte eincineração de lixo hospitalar.O estudo ainda mostra que um dos grandes problemasno descarte indevido desse tipo de lixo tóxico, é a contami-nação dos rios,córregos e o lençol freático.O resultado des-se crime ambiental é uma população inteira doente, com as
  60. 60. 69Vida no lixomais variadas patologias, desde uma simples alergia a umcâncer.Diferente das embalagens de agrotóxicos são as garrafaspet que podem ser bem aproveitadas, como na confecçãode móveis, brinquedos, peças decorativas, podem inclusivevoltar a ser uma garrafa de refrigerantes, etc.Não menos preocupante que as embalagens de agrotó-xicos, é a situação das sacolas plásticas. O volume do con-sumo desses materiais cresceu vertiginosamente. Elas sãolevadas principalmente dos supermercados e servem paraser entupidas de resíduos domésticos e levadas pela coletamunicipal de lixo,reduzindo totalmente as chances de reci-clagem. Dados da Secretaria Estadual do Meio ambiente deSão Paulo mostram que 18% do lixo dos paulistas corres-pondem aos sacos plásticos,e menos de 1% disso reciclado.No Brasil,a produção anual de sacolas plásticas chega a 210mil toneladas, o que representa 10% do lixo do País, cujacapacidade dos aterros e lixões está no limite.Em Campinas,tramita na Câmara Municipal um projetode lei que prevê a proibição do uso desse produto,derivadode petróleo, no comércio varejista. Já as garrafas pet po-dem ser reaproveitadas na confecção de móveis, vassouras,brinquedos, peças decorativas e inclusive voltar a ser gar-rafas de refrigerante. Aparecem, entre outros recicláveis,nos últimos estudos sobre tratamento térmico e geração deenergia a partir dos resíduos urbanos.Esse tipo de energia já é realidade em alguns paises daEuropa. A intenção é substituir a força produzida a partirde combustíveis fósseis pela gerada a partir do lixo, con-siderada, entre os pesquisadores, uma fonte alternativa erenovável que trará resultados benéficos. Por exemplo, olixo das 300 maiores cidades brasileiras podem produzir
  61. 61. 70Sociedade do Lixo15% da energia elétrica consumida no País, revela o PlanoDecenal de Produção de Energia 2008/2017, do Ministériode Minas e Energia.Além disso,a transformação de lixo em energia apresen-ta outros dois resultados favoráveis. O primeiro impulsio-na a armazenagem correta dos resíduos, que passam a sermatéria-prima. Dados do IBGE de 2000 indicam que 63,3%dos municípios brasileiros tratam o lixo de forma errada.Normalmente só indicam o local onde os detritos devemser jogados.O outro benefício está na esfera econômica: assim comooutras fontes de energia renovável, o lixo pode gerar crédi-tos de carbono e beneficiar o Brasil nas negociações sobremudanças climáticas.A geração de créditos se deve à quei-ma do metano, produto natural da decomposição orgânica.Esse gás é mais nocivo ao aquecimento global.O assunto energia, não despertou ainda o interesse deMaria, que não se preocupa com pesquisas, estudos etc.Basta-lhe ser uma mulher daquelas de conversa agradável,que fala das privações por que passou, sem sentir dó de si.Ela sabe dos sentimentos do filho,mas diferentemente dele,vive sem rancor do que teve que suportar na vida. Sua facerosada brilha junto com seus olhos castanhos. Os cabeloscastanhos escuros escondem-se numa touca de cozinheira.É assim que ela ganha o seu sustento hoje em dia.As mãos adenunciam: são de uma trabalhadora braçal. Mostram quenos braços fortes há a mesma eficácia de antes.A expressão de Maria mostra o caráter e a energia dadona de casa. Orgulhosa de tudo que fez na vida, garanteque não se abate por pouco. Os anos de catadora fizeramdela uma pessoa intensa e segura nas suas emoções. O sor-riso sempre presente no rosto se mistura com as idéias quedefende:
  62. 62. 71Vida no lixo— No meu coração não há lugar pra raiva. Vejo o mun-do diferente.Acho que tinha um sentimento que misturavaódio e felicidade. Mas não me lembro direito, pois semprefui feliz, apesar de tudo.A pouca idade que tinha quando começou a viver a durarealidade de catadora, não a influenciou negativamentepara tocar a vida, pelo contrário, encarava e via o lixo ape-nas como sua principal fonte de renda. Mas também comoum agente de degradação da natureza. Por causa das raízesrurais, sempre soube da importância do meio ambiente.— Levantava às seis horas da manhã, e gostava de ver osol nascendo. Ia dormir às duas, porque tinha que deixartudo pronto, mas também gostava de ver a noite. Naquelaépoca eu pensava que aquele lixo todo estragava as plantasque Deus tinha deixado pra humanidade. A trabalhadora olha para as mãos doentes.— O lixo me deixou essa herança nos dedos. Tenho reu-matismo e um problema que os fizeram ficarem tortos porcausa da tanta friagem.Maria lembra que, entre os catadores, é grande o núme-ro de pessoas com verminose, pneumonia, bronquite e ou-tras doenças respiratórias. Doenças de pele são igualmentecomuns, além dos acidentes, quando se está descalço, desandálias e sem luvas. Os problemas intestinais vêm doconsumo de alimentos encontrados em condições precá-rias, muitas vezes vencido, inclusive restos que chegam defeiras livres e supermercados.— Não sei se agora esse problema diminuiu. Penso quesim. Do contrário todo mundo que vai pro lixão tira seupão, mas também traz consigo doenças — pronuncia ba-lançando a cabeça.A resposta para a dúvida de Maria não é boa. O Mo-
  63. 63. 72Sociedade do Lixovimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis(MNCR) levantou a situação desses trabalhadores brasilei-ros, em 2006. Em relatório afirma que a categoria encon-tra-se em condições de vida precárias. São desprovidos dehigiene e moradia digna, vivem normalmente próximos alixões, em decorrência da falta de equipamentos de prote-ção e do trabalho escravo não possuem capacitação e se-guem expostos a doenças infecto-contagiosas. Além disso,por trabalharem, na maioria, individualmente e na infor-malidade, não têm acesso a equipamentos que possam ge-rar escala na produção.Acabam vendendo os materiais co-letados a preços irrisórios para intermediários.Maria nem pensava que, além da falta de proteção, o fi-lho fez parte da estatística de exploração de trabalho infan-til.As pequenas mãos que remexeram o lixo iam nuas. Mãee filho contavam com o olfato e a visão.Usando os sentidos,driblavam as dificuldades do serviço; muitas vezes,só o pa-ladar lhes importava.Davi Amorim, do setor de comunicação do MNCR, con-fessa que essa atividade econômica é totalmente desorgani-zada. Ele mostra a diferença enorme de preços com que osprodutos são vendidos.A garrafa pet é um exemplo: em SãoPaulo, vende-se por 90 centavos o quilo; já na Bahia, por 15centavos a mesma quantidade.A discrepância dos preços denuncia que a catação reve-la a degradação humana, gera indignação e revolta, alémda privação de condições sociais para ter uma vida dignacomo a de qualquer trabalhador. Coletar material reciclá-vel não requer nenhum tipo de exigência física e técnica, eabrange um mercado dinâmico e matéria-prima abundantemisturada ao lixo comum. A invisibilidade social, seguidada indiferença, torna esses servidores, perante os demais
  64. 64. 73Vida no lixotrabalhadores, ninguém. Os catadores não têm hora nemdia para labutar.Apesar de tantas diferenças, para Maria, todo trabalho édigno.A certeza da dignidade aparece na fala:— Eu olhava pro lixão e via um serviço como outro qual-quer. Catava de tudo e não tinha vergonha de nada. Aliás,até hoje eu cato as coisas na rua. Eu e meus filhos sempreusamos tudo o que as pessoas jogavam no lixo. Era assimmesmo. Achava as roupas e reformava pra mim; o que eramelhorzinho consultava pros dois filhos. Maria guarda carinhosamente as lembranças namemória. O filho Edivaldo, ao contrário, não quer nempensar no trajeto que precisou percorrer sem poder optarsobre o rumo que gostaria de seguir.Mãe e filho, cada um à sua maneira, buscaram oportu-nidades de trabalho. Ela segue como cozinheira. Ele, comofotógrafo, prestes a conquistar o diploma de publicitário.Saíram denifitivamente da condição de catadores. Masigualmente ao que aconteceu com eles, quantas contradi-ções existem por aí nas ruas, diante dos lixos que são fuça-dos por seres humanos explorados nas mesmas proporçõesdas fábricas desde o século XIX?Muitos bichos-homens permanecem fuçando lixos. OBrasil precisa urgente de uma política de redução da pro-dução de lixo,tanto para os domicílios quanto para a indús-tria, pois o que é levado para a coleta é um volume muitopequeno. Se for interpretada como uma política institucio-nal de redução na produção de resíduos, automaticamente,haverá a seleção prévia desse lixo. O resultado disso: o quenão vai para o aterro, vai para a reciclagem.Está mais do que provado que o grande predador domeio ambiente, causado pelo homem, é o consumismo: o
  65. 65. 74Sociedade do Lixogerador de lixos! O que faz do ser humano uma peça, umamáquina a usufruto do capital, como descrito, por CharlesChaplin, no filme Tempos Modernos, de 1936. Filme esseque nunca deixou de ser atual. Nele a personagem dá duronuma linha de montagem, até ser engolida pela engrena-gem, mostrando, assim, a exploração da força do trabalho.Trabalhador e máquina se misturam como se fossem omesmo objeto.Sendo assim a indústria do lixo não poderia ser dife-rente das demais, o dinheiro ainda é o domador da basecomposta dos muitos cidadãos, que encontram na cataçãoa única oportunidade para seguir com a vida.Enquanto os catadores padecem mexendo e remexendonos lixos das ruas, os engravatados das bolsas de valoressão os‘trabalhadores’ que ditam as regras.Mas e os catado-res? Esses são só catadores! Até quando?
  66. 66. Maurício Vegan no escritório da Casa do EstudanteJulianoSchiavo
  67. 67. 77Juliano SchiavoOng trabalha geração derenda e, de quebra, consciênciaambientalA Casa, a kombi, dois cães eum vegetarianoNo centro de Americana, quem passa pela rua Ca-rioba, vira à esquerda na rua Francisco Manuel,e segue reto, logo se choca com um terreno quedestoa dos restantes. Se as lojinhas daquela área se estre-bucham logo na calçada, como se tivessem a intenção depuxar os futuros clientes para dentro, surge, como numvácuo, uma área vazia. Seguida dessa área, há um muro. E
  68. 68. 78Sociedade do Lixonesse muro, de cor amarelada, há quatro retângulos tatua-dos,nas cores verde,vermelho,azul e preto.Em seu interiorhá frases e palavras como “Vida pessoal: transforme-se emum cidadão sustentável”, ou “Resíduo têxtil, plástico, me-tal... Doe seu lixo”.Aquele é um muro que se comunica comquem joga olhares curiosos. É o marketing que busca a do-ação de lixo.Passos à frente e lá está um portão. É um portão cinza-enferrujado, que, quando aberto ou fechado, faz barulhode trovão. TRUMMMMM. O portão também tem cabelo es-petado: são pontas bem afiadas, que ficam eriçadas, paraatrapalhar o pulo de um possível ladrão. E lá dentro, quan-do se abre o portão, ficam guardados os lixos, que cedo outarde vão sofrer algum processo de seleção. Rejeitos sãoseparados e ordenados em grandes sacos ou até mesmoem caixas de papelão. Nesse cenário, não poderia faltar umcão, ou melhor, dois rotwaillers: Pandora e Thor. Com seusladros, ou até mesmo dentes afiados, protegem os resíduos,os equipamentos eletroeletrônicos (como computadoresdescartados) e tudo que está no barracão. O local recebeo nome de Metareciclagem e pertence à organização nãogovernamental Casa do Estudante, uma entidade sem finslucrativos,presidida por Maurício de Melo,ou melhor,Mau-rício Vegan. De vegetariano.Aqueles resíduos guardados pelos cães são uma peque-na parcela do que muitos consideram lixo. Em Americana,cidade com população estimada em aproximadamente 200mil habitantes (2008),é produzido diariamente 173 mil qui-los de lixo. Já no Brasil, a quantidade de lixo domiciliar é
  69. 69. 79A Casa, a kombi, dois cães e um vegetarianode 115 mil toneladas por dia. Se esses rejeitos fossem co-locados de uma só vez em caminhões, haveria uma fila de16.400 deles ocupando 150 quilômetros de estrada. Em trêsdias, essa fila ultrapassaria a distância entre São Paulo eRio de Janeiro.Desse lixo todo, cerca de 30% é composto de materiaisrecicláveis, como vidro, papel, plástico e latas. Separar es-ses resíduos e reciclá-los traz uma série de vantagens, acomeçar pela redução do consumo de recursos naturais ede energia. Pegue-se como exemplo uma lata de alumínioreciclada: economiza energia elétrica suficiente para man-ter uma lâmpada de 60 watts acesa por quatro horas. E areciclagem de 100 toneladas de plástico evita o uso de umatonelada de petróleo.Já os resíduos eletrônicos que a Metareciclagem recolhe,como peças de computador,estão entre as categorias de de-tritos com o maior crescimento no mundo. São cerca de 40milhões de toneladas anuais descartadas. Só no Brasil, dezmilhões de equipamentos novos chegam às lojas todos osanos e, sem leis que regulamentem o destino do lixo tecno-lógico, cerca de um milhão de computadores são jogadosfora anualmente.— Uma das propostas da Metareciclagem é a recupe-ração de máquinas eletroeletrônicas e computadores. Daívamos abrir uma sala que vai servir para a comunidade teracesso à internet e também aprender a mexer nos compu-tadores. Estamos nessa dependência de resolver a questãofinanceira – destaca Vegan.Nesse cenário, a Metareciclagem consegue captar o lixode 70 famílias. O presidente da ong explica que, ao obser-



FONTE: http://pt.slideshare.net/jairovalenti/sociedade-do-lixo